"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Pessoa que aguardava há 10 horas na urgência para ser atendida dava entrevistas para as televisões na porta do hospital para a abertura dos telejornais. Os telejornais, que voltaram às urgências cheias depois de se terem fartado de estar nos centros de saúde, cheios de pessoas que não foram urgências porque para tal não se justificava ou por para lá terem sido encaminhadas pelo Saúde 24. As urgências estavam cheias porque coise e logo os centos de saúde porque coise estavam cheios. Um processo histérico-induzido para atrair papalvos na luta pelas audiências. Ao volante de uma ambulância na porta do hospital um cidadão com sotaque brasileiro deixava "os caras estão fazendo tudo direito lá dentro, o caso é que há gente a mais". 15 minutos de fama, imbecilidade jornalística, e não nos fodam, com efe grande.
"blah blah blah... aaa... blah blah blah... aaa... blah blah blah... aaa...", nunca tínhamos visto a dona Marta Temido tão temida e enrolada no próprio discurso. António Costa, chegado há bocado de Neptuno, e que não é primeiro-ministro há quase cinco anos nem pouco mais ao menos, reconheceu que "há um problema no Serviço Nacional de Saúde". É um bom começo de conserva, perdão, conversa, conserva, or ever, para a "comissão de acompanhamento" que o Governo vai nomear, e que, na velhilíngua, significa que o Governo se está a borrifar para o assunto e vai deixar empastelar a coisa durante uns meses, até o pico das festas com feriados e as férias de verão passarem. Na melhor das hipóteses uns anos até se voltar a falar nisto outra vez. A dona Marta Temido diz que o Governo, que não abre a mão do dinheiro dos contribuintes para pagar decentemente aos profissionais de saúde, está disponível para estudar acordos com privados. Foi você que pediu uma maioria absoluta e um Orçamento de Estado mais à esquerda desde que existe Orçamento de Estado e esquerda?
O direito do mais forte à vida, o direito do mais forte à liberdade. Quem tiver dinheiro paga pelo acesso aos cuidados de saúde, pelo acesso à justiça, pelo acesso à educação. Tudo são números e as pessoas acima de tudo são números e quando as pessoas deixam de ser números é porque passaram a ser danos colaterais, menos um a atrapalhar na cadeia alimentar. Ao contrário do que escreveu Jean-Jacques Rousseau em "O Contrato Social", o homem é naturalmente mau, sendo a sociedade, instituição regida pela política, a responsável pela sua humanização. É por isso que é importante desregular, desmantelar o Estado, liberalizar, abolir a solidariedade e expurgar qualquer réstia de humanidade. Louvor ao Deus Mercado que matou a herança e a tradição judaico cristã.
Um ministro da Saúde que aparece nas televisões a dizer, sem se rir ou sem sequer pestanejar ou enrolar a voz, que «o caos nos hospitais se deve aos 600 médicos que se reformaram», que a «culpa é das reformas antecipadas», é um ministro que não tem a noção da dimensão e do impacto das "reformas estruturais" e das "reformas sectoriais" levadas a cabo pelo ministro da Saúde do Governo e pelo Governo do ministro da Saúde. Vive numa realidade paralela, portanto.
É sinal que não teve problemas de saúde, ou familiares com problemas de saúde, nos últimos anos. Que bom para ele. Ou que não era líder, na oposição, de um partido do arco governamental. Ainda não decidi. Mas já percebi.
Seis horas depois de entrar no Hospital de S. Bernardo em Setúbal, como acompanhante de um doente com cólicas renais, ser transferido para o Hospital de S. José em Lisboa porque o urologista de serviço ao hospital de Setúbal não faz banco de urgência.
A picar 150/ 160 na auto-estrada, curvas em duas rodas, balizar a Via Verde a 120 à hora, ponte 25 de Abril a 130 porque este gaijo nã sai da frrrente, travagens com a caixa de velocidades e mais a porra do semáfrrre que nunca mais muda na saída do túnel das Amoreiras, numa ambulância de uma empresa privada de transporte de doentes, ao som de Lady Gaga no rádio.
Rah-rah-ah-ah-ah! Roma-Roma-ma-ah! Ga-ga-ooh-la-la! Want your bad romance, saio de casa às 10 da manhã para tornar a entrar às nove e meia da noite.