"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
No passado sábado entrei às 20 horas na urgência do S. Bernardo em Setúbal a acompanhar um familiar octogenário. Foi-lhe atribuída pulseira amarela, na "Triagem de Manchester" doente urgente, até 60 minutos de espera. Foi visto pelo médico às 5 da manhã, 9 - nove - 9 horas depois, saiu no domingo às dez da manhã. Diz Luís Montenegro, com aquele permanente sorriso cínico de quem está a gozar com toda a gente, que “há um ano atrás a Saúde estava pior do que está agora”. Tem razão Montenegro, um ano depois não há aberturas de telejornais com directos intermináveis na porta das urgências, com a prestimosa colaboração de familiares acompanhantes que andavam lá por dentro, de telemóvel na mão, a filmar à socapa para passar as imagens à televisão do Correio da Manha [sem til] ou aos sucedâneos Now e CNN Portugal. Um ano depois não há histerismo induzido. Um ano depois a última grávida que pariu numa ambulância ainda a Temido era ministra e, antes dessa, tinha sido no tempo do Correia de Campos. Um ano depois não há caos nas urgências, há "constrangimentos". Bem podiam os alegados jornalistas esmerar-se e perguntar a Luís Montenegro como é que a Saúde está em relação "há um ano ao lado" ou "há um ano à frente" porque em relação "há um ano atrás" só quem por lá passa sabe que o primeiro-ministro mente com quantos dentes tem na boca com a ajuda de quem trabalhou para o meter no cargo que ocupa.
No tempo do PS era "o caos nas urgências hospitalares", com eternos directos da porta do hospital, entrevistas a utentes, médicos e enfermeiros sem rosto e com a voz filtrada, gravações piratas do interior feitas com telemóvel pelos acompanhantes dos internados.
Agora são as "urgências com constrangimentos" e umas breves declarações da tutela ou de um administrador de hospital nomeado pela mesma tutela, com a atenuante de estarmos na época das gripes e das infecções respiratórias, coisa nunca vista era o Partido Socialista governo.
Pessoa que aguardava há 10 horas na urgência para ser atendida dava entrevistas para as televisões na porta do hospital para a abertura dos telejornais. Os telejornais, que voltaram às urgências cheias depois de se terem fartado de estar nos centros de saúde, cheios de pessoas que não foram urgências porque para tal não se justificava ou por para lá terem sido encaminhadas pelo Saúde 24. As urgências estavam cheias porque coise e logo os centos de saúde porque coise estavam cheios. Um processo histérico-induzido para atrair papalvos na luta pelas audiências. Ao volante de uma ambulância na porta do hospital um cidadão com sotaque brasileiro deixava "os caras estão fazendo tudo direito lá dentro, o caso é que há gente a mais". 15 minutos de fama, imbecilidade jornalística, e não nos fodam, com efe grande.
"blah blah blah... aaa... blah blah blah... aaa... blah blah blah... aaa...", nunca tínhamos visto a dona Marta Temido tão temida e enrolada no próprio discurso. António Costa, chegado há bocado de Neptuno, e que não é primeiro-ministro há quase cinco anos nem pouco mais ao menos, reconheceu que "há um problema no Serviço Nacional de Saúde". É um bom começo de conserva, perdão, conversa, conserva, or ever, para a "comissão de acompanhamento" que o Governo vai nomear, e que, na velhilíngua, significa que o Governo se está a borrifar para o assunto e vai deixar empastelar a coisa durante uns meses, até o pico das festas com feriados e as férias de verão passarem. Na melhor das hipóteses uns anos até se voltar a falar nisto outra vez. A dona Marta Temido diz que o Governo, que não abre a mão do dinheiro dos contribuintes para pagar decentemente aos profissionais de saúde, está disponível para estudar acordos com privados. Foi você que pediu uma maioria absoluta e um Orçamento de Estado mais à esquerda desde que existe Orçamento de Estado e esquerda?
O direito do mais forte à vida, o direito do mais forte à liberdade. Quem tiver dinheiro paga pelo acesso aos cuidados de saúde, pelo acesso à justiça, pelo acesso à educação. Tudo são números e as pessoas acima de tudo são números e quando as pessoas deixam de ser números é porque passaram a ser danos colaterais, menos um a atrapalhar na cadeia alimentar. Ao contrário do que escreveu Jean-Jacques Rousseau em "O Contrato Social", o homem é naturalmente mau, sendo a sociedade, instituição regida pela política, a responsável pela sua humanização. É por isso que é importante desregular, desmantelar o Estado, liberalizar, abolir a solidariedade e expurgar qualquer réstia de humanidade. Louvor ao Deus Mercado que matou a herança e a tradição judaico cristã.
Um ministro da Saúde que aparece nas televisões a dizer, sem se rir ou sem sequer pestanejar ou enrolar a voz, que «o caos nos hospitais se deve aos 600 médicos que se reformaram», que a «culpa é das reformas antecipadas», é um ministro que não tem a noção da dimensão e do impacto das "reformas estruturais" e das "reformas sectoriais" levadas a cabo pelo ministro da Saúde do Governo e pelo Governo do ministro da Saúde. Vive numa realidade paralela, portanto.
É sinal que não teve problemas de saúde, ou familiares com problemas de saúde, nos últimos anos. Que bom para ele. Ou que não era líder, na oposição, de um partido do arco governamental. Ainda não decidi. Mas já percebi.
Seis horas depois de entrar no Hospital de S. Bernardo em Setúbal, como acompanhante de um doente com cólicas renais, ser transferido para o Hospital de S. José em Lisboa porque o urologista de serviço ao hospital de Setúbal não faz banco de urgência.
A picar 150/ 160 na auto-estrada, curvas em duas rodas, balizar a Via Verde a 120 à hora, ponte 25 de Abril a 130 porque este gaijo nã sai da frrrente, travagens com a caixa de velocidades e mais a porra do semáfrrre que nunca mais muda na saída do túnel das Amoreiras, numa ambulância de uma empresa privada de transporte de doentes, ao som de Lady Gaga no rádio.
Rah-rah-ah-ah-ah! Roma-Roma-ma-ah! Ga-ga-ooh-la-la! Want your bad romance, saio de casa às 10 da manhã para tornar a entrar às nove e meia da noite.