"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Ver na televisão Durão Barroso, o primeiro-ministro que serviu de mordomo na Cimeira das Lajes, e Paulo Portas, o ministro da Defesa que organizou o encontro que decidiu a invasão ilegal do Iraque, com as consequências que perduram desde 2011 - terrorismo islâmico, vagas sucessivas de refugiados para a Europa, nascimento e ascensão do ISIS, guerra na Síria, milhares de mortos no Mediterrâneo, instabilidade em toda a região, mais fome e miséria, a comentarem a invasão russa da Ucrânia. Não ter a puta de vergonha na cara, não deles, que nunca a tiveram, mas das televisões que os convidam para o prime time, pagam principescamente, e de todos os que assistem, passivos e amorfos, sem se dignarem a fazer zapping.
"Cristina quer Sócrates no próximo BB" ou a certidão de óbito na réstia de decência e credibilidade política e humana que só existe na cabeça de José Sócrates e de alguns indefectíveis, e que ainda lhe[s] alimenta alguma esperança num regresso ao activo. Dando como exemplo dois actores políticos que têm a imagem mais de rastos aos olhos da opinião pública, alguém imagina uma manchete qualquer com "Cristina que Durão Barroso no BB" ou "Cristina quer Paulo Portas no BB"?
25 minutos de debate são mais que suficientes para se falar exactamente do mesmo que se fala nos debates de uma hora ou mais e que essencialmente favorecem os pantomineiros malabaristas de palavras.
Do "caos no atendimento" e das "intermináveis horas de espera" para receber a vacina, nos idos de Fernando Medina, para "longas filas" e "algum constrangimento", agora, no tempo de Carlos Moedas. Agora que está a chegar a época se calhar recuperávamos a cantiga do spot "Para o Natal, o meu presente, eu quero que seja, A Minha Agenda, A Minha Agenda...".
Desinformação, racismo, fakenews, aquecimento global, blah-blah-blah, poluição, feminismo, pegada alimentar, igualdade, patati patatá, à cautela o melhor é ir tratando da vidinha, que custa a todos, enquanto não se faz um programa sobre precaridade, exploração extrema, total ausência de direitos e garantias, o capitalismo selvagem elevado à sua máxima potência, que sou uma mulher de causas, muito moderna, muito coerente.
Não é um subsídio é compra antecipada de publicidade. E além disso ainda não recebemos um cêntimo sequer, logo não conta. O Estado incumpridor a pôr em causa o salário dos estagiários e dos recibos verdes. Também não andamos aqui para perder o nosso rico dinheirinho e nunca contratávamos a Ronalda da televisão pimba se não tivéssemos o retorno do investimento proporcionado pelas audiências proporcionadas pelos palermas que se indignam muito no Facebook com as aquisições que fazemos.
Não ter a puta da vergonha na cara é isto: o canal, o Estado, e quem está no sofá com o comando da televisão numa mão e o android na outra, a meter likes no Facebook e selfies no Instacoise.
"Quem é que nunca teve problemas com o motor de arranque?"
O regresso de alguns comerciais às televisões dizem mais do estado da Nação em tempos de Covid-19 que horas a fio de comentadeiros com avença no prime time generalista e em contínuo no cabo.
A televisão do militante n.º 1, aka SIC e SIC Notícias, descobriu que os hospitais privados cobram aos utentes o equipamento de protecção Covid-19 usado pelo pessoal médico. E faz notícia de telejornal com isso e com pessoas da "livre escolha" entre público e privado muito indignadas com mais esta parcela na factura da "saúde negócio". E ficamos sempre sem saber se estas indignações são genuína burrice; se estas indignações são genuína ignorância da máxima "não há almoços grátis"; se estas "manchetes" de telejornal são apenas mais um passo no "processo Correio da Manha em curso" nos canais auto-intitulados de referência; se isto não é só genuína sonsice da televisão do militante n.º 1 a tentar passar a ideia de que público e privado é tudo "a mesma luta".
Temos Bento Rodrigues, um gajo sóbrio e calmo, com dicção pausada e tom de voz baixo, a apresentar o telejornal da SIC em tempos de pandemia, medo e alarme social. E depois temos José Rodrigues dos Santos na RTP 1, um peixeiro histrionico, aos berros e de olhos esbugalhados, apostado em acagaçar uma plateia. Na televisão pública. Sim senhor.
Nenhuma linha de saúde em nenhum país do mundo está preparada para receber um fluxo de chamadas decorrente de uma pandemia global como a que estamos a viver. Nem nenhum serviço de saúde está preparado para receber um tão elevado número de doentes com uma doença específica, como o que está a acontecer em Itália com a pandemia do novo coronavírus. Nenhuma cadeia de supermercados está preparada para receber num só dia o fluxo de clientes que recebe numa semana e apostado em comprar de uma só vez o que habitualmente compra durante um mês. Assim como é impossível fazer uma chama telefónica ou a ceder ao wi-fi num ponto onde esteja concentrado um elevado número de pessoas de telemóvel na mão, já todos passámos por isso, numa passagem de ano ou num festival de verão. E é do senso comum e nem devia ser passível de discussão e de comparações parvas. E depois há a irresponsabilidade da televisão do Correio da Manha que passa uma manhã agarrada ao telefone para o Saúde 24 para poder dizer no telejornal que o tempo de resposta foi de xis horas, enquanto entupiu ainda mais o sistema e tirou a vez a alguém realmente necessitado. E isto devia dar prisão sumária e cassação da licença de emissão.
[Na imagem "An Iranian man uses a provided toothpick to press an elevator button in an office building in Tehran on March 4, 2020, as a preventative measure against viral transmission", Atta Kenare/ AFP]