"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
As primeiras páginas dos jornais no dia a seguir ao Público ter feito manchete com a fraude no valor de 6.747.462 € [seis milhões setecentos e quarenta e sete mil quatrocentos e sessenta e dois euros] com fundos comunitários, era Miguel Relvas secretário de Estado da Administração Local no Governo de Durão Barroso e Pedro Passos Coelho administrador da Tecnoforma, a empresa beneficiária dos fundos.
O princípio subjacente é o mesmo que leva a que Portugal seja sistematicamente condenado em última instância pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, contra todas as decisões e interpretações dos sucessivos tribunais nacionais, em casos de, por exemplo, liberdade de expressão. Somos todos a favor mas "o respeitinho é muito bonito", com a agravante de, neste caso concreto, o senhor ter passado quatro anos de uma legislatura a proclamar a necessidade de disciplinar, moralizar, fiscalizar a atribuição de fundos comunitários, prontamente badalado aos quatro ventos pelos apóstolos nas "redes sociais".
«Toda a documentação relativa ao pedido de pagamento de saldo deste projecto dos aeródromos, que decorreu entre 2004 e 2006, foi entregue pela Teconoforma à CCDRC em Março de 2007 com as assinaturas de Pedro Passos Coelho e Francisco Nogueira Leite (actual presidente da Parvalorem), então administradores da empresa.»
Pedro Passos Coelho que não se lembrava de nada uma semana depois lembrou-se de tudo e não foi uma semana para pensar se tinha ou não tinha fugido ao fisco, foi mesmo para se lembrar que não foi na Tecnoforma, que não foram 5 mil euros mensais, que foi numa ongue e que foi à factura, foi ao Porto, foi a Bruxelas, que foi a Cabo Verde estudar uma universidade à séria, nada de cursos à lá Relvas, trouxe as facturas dos táxis e das tripas e da cachupa e apresentou para o reembolso, não apresentou as dos grogues que bebeu além mar porque isso também já era abusar do pro bono e da boa fé da ongue. Não falou antes porque quis confirmar antes de falar se não tinha cometido nenhum ilícito que deve ser a mesma razão pela qual a ongue nunca é mencionada no currículo de cidadão ex-deputado e actual primeiro-ministro.
Na dimensão paralela onde habitam eles acreditam que nós acreditamos e ficam felizes com isso.
Uma vez que anda falho de memória e que o dinheiro é mato, o senhor primeiro-ministro pediu à Procuradoria-Geral da República para esclarecer se o cidadão Pedro Passos Coelho enquanto deputado recebeu ou não cinco mil euros mensais de uma empresa privada durante três anos. Se por artes mágicas ou dons de adivinhação da Procuradoria-geral da República o caso der positivo, que recebeu sim senhor, e que tenha sido em cash e pela porta do cavalo, os cinco mil euros mensais recebidos durante três anos pelo cidadão Pedro Passos Coelho enquanto deputado são do foro privado do senhor primeiro-ministro à semelhança da casa de férias na Manta Rota?
Quando daqui por 20 anos perguntarem a um actual remunerado pelo valor do salário mínimo nacional quanto é que ganhava por mês no ano da graça de 2014 vai responder prontamente, sem gaguejar e com 505 euros na ponta da língua, seja ele porteiro ou operário especializado, em regime de exclusividade na empresa ou a fazer uns biscates extra horário de trabalho para poder oferecer uma prenda às filhas no Natal.
Não lhes bastava a destruição do Estado e o desmantelamento do Estado social, não lhes bastava o arrasar da imagem da Justiça aos olhos do povo, não lhes bastava a destruição da Segurança Social, não lhes bastava a mutação das Finanças de ministério ao serviço do contribuinte em executor de penhoras ao serviço de entidades privadas, não lhes bastava a destruição da instituição Presidência da República, ainda tiveram de arrastar para a lama e de destruir a imagem da casa da democracia, a Assembleia da República.
Ninguém se demite porque os mandatos são para levar até ao fim e ainda falta saquear a TAP, a RTP, a Águas de Portugal e a Caixa Geral de Depósitos.
Ninguém é demitido porque Cavaco Silva é um "institucionalista" e os mandatos são para levar até ao fim e ainda falta saquear a TAP, a RTP, a Águas de Portugal e a Caixa Geral de Depósitos.
Não se lembra. Cinco mil euros mensais entre 1995 e 1998, como 'porteiro'. Não se lembra. Em 2014 Marinho e Pinto vem dizer que 4 800 euros não dão para viver razoavelmente em Lisboa, como deputado. A inflacção. Quase 20 anos antes e não se lembra. Vivia em Massamá. Cinco mil euros mensais como 'porteiro', extra parlamento. No país do salário médio a rondar os 980 euros e o mínimo a não bater os 500. Não se lembra. O custo de vida aumenta, o povo não aguenta. E o remanescente não ia para o partido que PPD não é PCP. Não se lembra. O 'porteiro'. No 'condomínio' entravam e saíam muitas caras. Ninguém é obrigado a ter memória de polícia político. Não se lembra. A vida custa a todos.