"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Se Portugal não fosse um país Lisboa centrado, com escapadelas pontuais ao Porto, as próximas autárquicas tinham o foco das televisões em Setúbal onde vai acontecer a mais maravilhosa/ fantástica/ inusitada disputa da história do poder local em democracia.
Carlos Sousa, o eleito presidente pela CDU, que há 24 anos pôs fim a década e meia de marasmo, caos urbanístico e arquitectónico, desordenamento do território, compadrio, pato-bravismo, promiscuidade entre poder político e futebol, do PS de Mata Cáceres, aparece agora como mandatário, o homem que vai dar a cara pela candidatura do Partido Socialista, tendo como oponentes declarados a sua ex vereadora da Cultura, e sucessora na presidência da autarquia - Maria das Dores Meira, agora como candidata independente, e André Martins, actual presidente da edilidade, e ex vereador do Ambiente no executivo que arredou os socialistas da governação da cidade por um quarto de século.
E é este o drama do PCP, ser o municiador de talentos para outros, desde o PS ao Bloco passando pelo PSD, enquanto definha nas urnas. O PCP está para a política como o Vitória da cidade está para o futebol e para os grandes.
[Imagem "Aspecto do edifício da Câmara Municipal de Setúbal, aquando do incêndio de 1910", Américo Ribeiro]
Adenda: ontem o inefável Santana Lopes abriu os telejornais. Mas isso não tem a ver com a Figueira da Foz, tem a ver com um vírus que contamina a política portuguesa chamado "amiguismo lisboeta"
Na chico-espertice de servir Setúbal de 20 em 20 minutos, sem aumento de custos em relação aos de 30 em 30 em vigor desde há 30 anos, a Fertagus, na hora de ponta, passou os comboios das habituais oito composições para quatro, sem fazer o trabalho de casa, na ignorância de que a questão não era o aumento das circulações mas o aumento das circulações em função do aumento de passageiros.
Na hora de ponta, e no sentido Setúbal - Roma/ Areeiro, na estação do Fogueteiro não cabe uma folha de papel entre as pessoas. Num registo de humor negro sádico ainda metem a gravação "Não se aglomere junto à porta, distribua-se pela carruagem", já que não pode ir ninguém lá em cima, como no Paquistão e na Índia, por causa das catenárias.
Na estação Foros de Amora saem 5 e entram 15, não se sabe como mas é assim. A seguir, em Corroios, é preciso ser mestre em artes marciais para conseguir sair do comboio e chegar a horas ao trabalho, no cais estão centenas para entrar. Obviamente não entram. Começaram por meter uns desgraçados da empresa de segurança Strong Charon nas plataformas, a fazer não se sabe bem o quê já que não lhes forneceram luvas brancas para empurrarem as pessoas para dentro das carruagens, à imagem do que acontece no metro de Tóquio. Agora já lá estão os seguranças e agentes da PSP mas a Fertagus está a efectuar "validações de contagens de passageiros e, se for validada a atual perceção da procura, no dia 20 de janeiro procederá a alterações na afetação dos comboios duplos". Uma coisa todos temos a certeza, da percepção que os utentes têm deste bando circense que administra uma empresa de transportes concessionada pelo Estado e subsidiada pelo Orçamento do Estado. Ainda correm o risco de acabar com aumento de prémio de gestão, nomeados para "Melhor Gestor do Ano", e entrevistados pelo Zé Gomes na televisão do militante n.º 1 por este acto de prestidigitação empresarial. Do ministro Pinto Luz, que apareceu mais rápido que a própria sombra a reclamar os louros governamentais deste fornecimento de transporte ferroviário à capital do distrito, nunca mais ninguém ouviu falar, desapareceu, "are you talking to me?".
O partido que quer os centros comerciais fechados ao domingo e feriados, "mais qualidade de vida para os trabalhadores e para o povo", dá o exemplo e abre o mercado municipal do Livramento ao domingo, feriado municipal, dia de Bocage, dia da cidade de Setúbal. Espectáculo.
Apareceu no dia 26 de Abril de 1974 na parede da fábrica de conservas 1.º de Março, à Rua Camilo Castelo Branco em Setúbal, e ainda lá está. E diz muito da escolaridade obrigatória do Estado Novo, até à 4.ª Classe, grande melhoria sobre a anterior, obrigatória até à 3.ª Classe. "Vai mazé trabalhar que é para te fazeres um homem", mais que uma máxima um princípio de vida então instituído. 50 anos depois há quem o continue a apregoar.
Por sua proposta, enquanto integrante da primeira Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Setúbal como vereadora da Cultura no pós revolução de Abril, o feriado municipal deixou de ser assinalado a 25 de Julho, dia de Santiago, para ser celebrado a 15 de Setembro, dia do nascimento de Manuel Maria Barbosa du Bocage, filho da cidade. Só por isto já tinha valido a pena.
Era o mais difícil de sair, "o mais custoso" dos bonecos da bola a embrulhar os rebuçados manhosos de acúcar caramelizado que se vendiam na taberna do João Bicho ao Bairro Santos Nicolau em Setúbal. A quem saísse o Pavão tinha o direito de reivindicar uma bola de cautchu ao balcão, "cát' chumbe", como diziam os miseráveis de pé descalço na doca das Fontainhas. E por uns tempos eram os maiores do bairro. "A bola é minha". "Agorra sã todes riques, já nã se joga à bola da rua e já ninguém vai ó banhe à doca, vai tude feite pandelerre du barrque táxi pá Trróia" [*], como me disse o A., amigo de brincar na rua nesse tempo que encontrei há dias na... doca das Fontainhas e que ficou para sempre lá, no sítio e no tempo. A verdade é que se calhar ele é quem tem juízo...
[*] Em setubalense: "Agora são todos ricos, já não se joga à bola na rua e já ninguém vai ao banho à doca, vai tudo feito paneleiro no barco-táxi para Troia"]
Rui Rocha do Ilusão Liberal foi ao Livramento em Setúbal para, no intervalo de dar dois beijinhos à Bia e apertar a mão ao Jaquim, que não sabem quem o Rocha é mas sabem as televisões atrás dele, dizer que António Costa deixar o Conselho de Estado a meio para ir mesmo ali abaixo, aos antípodas, ver as gajas jogarem à bola, é imagem de marca do governo socialista, atenção ao peru menor, não é do Partido Socialista, é socialista, quando o ponto em relação à tertúlia da véspera é o que é aquela gente toda esteve alia a fazer quatro horas, que palhaçada foi aquela, já que nada do que estava em cima da mesa é das suas atribuições e competências, mas prontes, damos o desconto porque se calhar isso o Rocha não sabe e não se pode pedir a um aprendiz de pantomineiro que saiba as competências de um Conselho de Estado.
Fui dar uma volta pelos arraiais dos santos populares nos bairros [alguém devia dissecar quais são os santos impopulares]. Parecia que estava dentro do Preço Certo. Só faltou aparecer o Gordo: "Grande tema! Grande voz! Queres deixar mensagem para alguém sobre as tuas redes sociais?". Nem música a metro é, é música ao quilómetro. Só as letras diferem, dos gajos que querem brincadeira e elas não dão para as gajas que querem encosto e eles vão já tratar do assunto. Imperial em copo de plástico. Eu gosto é do verão.
Eu estava descansado em casa quando me foram desinquietar, "é pá, não queres ir fazer o dj Faísca à Capricho e coise?", e eu "é pá o dj Faísca está morto há mais de 10 anos, não me fodam o juízo", e do outro lado "é pá, anda lá, uma vez não são vezes e o caralho", e eu " e qual é o nome da noite?", e do outro "lado "hang the dj!, como a música dos Smiths", e eu "foda-se, até parece que não sei, rebéubéu, conversa para aqui, conversa para ali, eu faço o cartaz". E prontes, o cartaz está feito, estão convidados, e vamos lá ver que merda é que sai daqui. O nome da noite não é para levar à letra, just saying.
[Provavelmente o graffiti mais antigo da cidade de Setúbal, desde o dia 26 de Abril de 1974 na parede da antiga conserveira 1.º de Março à Rua Camilo Castelo Branco]
Diz o candidato do Ilusão Liberal à câmara de Setúbal no Diário de Notícias de hoje que "em 47 anos foi só perder". Fazendo uma contas rápidas de cabeça: 2021 - 47 = 1974, o ano do 25 de Abril, e conclui-se que ele "Chega" ao tempo em que o presidente da câmara era nomeado pelo poder central fascista, o tempo em que a família valia na cidade pelo nome, em que não havia cá chatices com eleições e democracias. "Nos anos 70, éramos a terceira cidade do país". Cercada de bairros de lata por todos os lados, excepto pelo lado do rio, onde estavam os pés descalços que iam ao mar quando fazia bom tempo, 4.ª classe para os filhos e ala deitar rede ou aprender um ofício, que davam as mulheres às fábricas de conservas e divertiam-se a falar de bola nas centenas de tabernas que floresciam na cidade e, quando o paizinho do nome de família passava na rua, tiravam o boné, faziam uma vénia e diziam "bom dia sô tôr", que o respeitinho, que era muito bonito, perdeu-se todo com a merda do 25 de Abril, que a escumalha agora até tem canudo e não se inibe de opinar sobre a cousa pública. O partido novo da gente velha ou o novo partido da velha gente, vai dar no mesmo.
Pessoas de Lisboa não podem almoçar ou jantar até tarde em restautantes por causa do vírus mas podem meter-se no carro e ir almoçar a restaurantes em Setúbal por causa do vírus. O vírus não carrega no erre.
- Que violência chama violência e quem quem passa a vida a insultar e agredir verbalmente os outros só pode esperar a retribuição, é uma questão de tempo. E depois lá virá o Calimero com o dia negro e o atentado à democracia e a liberdade e o coise e tal quando dos maiores atentados que se podem fazer à democracia e ao Estado de direito democrático são as agressões a jornalistas e a coacção à imprensa, mas isso não é merecedor de condenação ou reparo.
- Que Joseph Goebbels inventou tudo o que havia para inventar em matéria de propaganda e agit-prop e que agora é só ir buscar e remasterizar porque há sempre uns pobres de espírito dispostos a tudo papar.
E foi um processo em crescendo. Começou com a insinuação de fraude eleitoral. Passou para a fraude dos ciganos inventados. Uma perseguição automóvel do Bloco de Esquerda. Uma incursão em território religioso que correu mal e passou ao lado da generalidade da comunicação social. Até uma tentativa de apedrejamento por ciganos verdadeiros com cartazes da candidata que o vai remeter para a terceira posição nas Presidenciais numa luta ombro-a-ombro com o candidato comunista. Tipo a facada do Bolsonaro, mas como os ciganos modernos não usam facas os ciganos inventados estavam lá atrás preparados para que tudo corresse pelo melhor. E o melhor tinha de ser hoje, o penúltimo dia de campanha, porque se fosse amanhã, o último dia, não servia para nada porque não era notícia em lado nenhum por causa do "dia de reflexão".
Percebem?
[A montagem de Bernie Sandres na recepção cigana ao Ventas é do Nuno Alexandre]