"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
O Serviço Nacional de Saúde tem de passar a ser assumido como um sistema que integra todos os cuidados de saúde instalados no país e, portanto, incluindo a oferta privada
Alegadamente sentiu-se mal ontem, foi para o Hospital de Faro, público. Alegadamente sentiu-se mal hoje, primeiro foi para o Centro de Saúde de Odemira, público, de seguida para o Hospital de Santiago do Cacém, público. Vai fazer cateterismo no hospital de Setúbal, público [actualização].
Não sabemos qual a margem de manobra de Ricardo Araújo Pereira no Isto É Gozar Com Quem Trabalha semanal, se tem liberdade total, se tem balizas, se obedece a guião, mas a verdade é que na entrada para a recta final da campanha tivemos Luís Montenegro na televisão do militante n.º 1, depois de uma peregrinação a Fátima, para se gabar de quão bom é, ele e o seu Governo e, para a reboque de perguntas para partir o coco a rir na assistência sem gargalhadas enlatadas, continuar a mentir com aquele característico sorriso cínico nos lábios, que o país é quase das maravilhas desde que está primeiro-ministro, e que o Serviço Nacional de Saúde está bem melhor do que "há um ano atrás" [nunca ninguém lhe pergunta se há "há uma ano à frente" ou "há um ano ao lado"], no tempo do "socialismo".
Por uma daquelas coincidências ditas do caralho, no dia a seguir o Correio da Manha fala em "ALARME", que a mortalidade infantil sobe 20% em ano de urgências fechadas, o de 2024, o dele, não se pode agarrar ao "socialismo", o do "farol" Montenegro, o da "montenegrização do país", o ano dos constrangimentos, nesta novilíngua que as televisões assumiram. Uma azar do caralho para o Governo com mestrado em propaganda, logo um dos indicadores sobre o estado de desenvolvimento do país, um dos apontados sucessos da democracia, e do Serviço Nacional de Saúde, contra a criação do qual a direita votou contra.
O governo que em três meses ia resolver todos os males de que o Serviço Nacional de Saúde padece esconde a sua incompetência e falta de qualidade nas nomeações para cargos chaves, ao abrigo do amiguismo e do cartão do partido, com uma alegada incapacidade de quem está no terreno a dar o melhor de si contra a permanente falta de meios e o garrote da tutela.
Questionado sobre o prometido fim da invasão russa da Ucrânia em 24 horas Donald Trump respondeu que estava a ser sarcástico, a Luís Montenegro já ouvimos dizer que nunca tinha dito aquilo que todos o ouvimos dizer, que ia resolver os problemas do SNS em 90 dias. Há aqui um padrão, o da mentira e do embuste para chegar ao poder.
Diz que os hospitais tiveram prejuízos de mais de 1.500 milhões de euros em 2024 e que todas as unidades locais de saúde tiveram resultados negativos. E de imediato ficámos com os ecrãs de televisão cheios de especialistas em economês, todos em carneirada "O drama! A tragédia! O horror!". Falta de eficiência e subfinanciamento à parte não é suposto o Serviço Nacional de Saúde dar lucro. Nem sequer resto zero. É para isto que servem os nossos impostos. E por isso que se chama Serviço Nacional de Saúde e não Luz Saúde ou CUF Saúde. E se calhar é por causa disso mesmo que estas coisas aparecem elevadas ao cubo.
[Na imagem, minha, cartaz no desfile dos 50 anos do 25 de Abril, Avenida da Liberdade, Lisboa]
Louvo, por proposta da Ministra da Saúde, Ana Paula Martins, o Tenente-Coronel, médico, 12204597, António João Sant’Anna Gandra Leite d’Almeida, pela forma excecionalmente dedicada e competente, bem como pela nobre conduta, integridade e profissionalismo com que exerceu as suas funções como diretor da Delegação Regional Norte do Instituto Nacional de Emergência Médica entre 2021 e 2024. [...].
Parece-me manifestamente pouco para alguém com o dom da omnipresença e que, mal grado uma incapacidade atestada de 60%, consegue estar em vários locais ao mesmo tempo, separados por centenas de quilómetros, a desempenhar quatro funções diferentes. Tem dois apóstrofos no nome, há-de haver alguém capacitado para, cientificamente, estabelecer esta correlação.
No tempo do PS era "o caos nas urgências hospitalares", com eternos directos da porta do hospital, entrevistas a utentes, médicos e enfermeiros sem rosto e com a voz filtrada, gravações piratas do interior feitas com telemóvel pelos acompanhantes dos internados.
Agora são as "urgências com constrangimentos" e umas breves declarações da tutela ou de um administrador de hospital nomeado pela mesma tutela, com a atenuante de estarmos na época das gripes e das infecções respiratórias, coisa nunca vista era o Partido Socialista governo.
Primeiro acabar com a manifestação de interesse. As filas para a regularização deixaram de ser visíveis nas portas dos serviços de estrangeiros e lojas de cidadão, a tal "visibilidade" papagueada por Montenegro. Mas os migrantes continuam cá, agora clandestinos, "por no llevar papel", sem contrato de trabalho, tudo apalavrado com empreiteiros e patrões sem escrúpulos, sem casa, sem segurança social, abrangidos pelo contrato colectivo do medo, "correr es mi destino para burlar la ley". A seguir vedar o acesso aos cuidados de saúde gratuitos e universais, só deveres, trabalhar, muito, em empregos de merda que mais ninguém quer, mal pagos, nenhuns direitos a não ser o direito a passar mal. Estava escrito, as notícias eram curiosas, diria mesmo muito curiosas.
Por um lado temos um Serviço Nacional de Saúde esgotado, sem recursos - humanos e materiais, nalgumas valências a chegar ao limite ou mesmo sem capacidade de resposta; por outro lado temos milhares de estrangeiros a usufruírem gratuitamente da excelência do Serviço Nacional de Saúde. "Doctor, doctor give me the news", ponha o dedo no ar quem gosta de ser gozado.
Voltando aos 100 mil não residentes que recorrem ao SNS, aos 48 mil no Algarve - mão-de-obra barata para construção civil, restauração e hotelaria; aos 42 mil na Região Oeste - mão-de-obra barata para hortícolas e frutícolas; aos 41 mil na região de Lisboa - mão-de-obra barata para construção civil, restauração, hotelaria, alojamentos locais, limpezas, entregas e outros uber desta vida, lá se vai a hipóteses do turista manhoso que vem do estrangeiro usufruir da qualidade do nosso SNS, e vai haver muito boa direita do "sentido de Estado", e alegadamente democrática, a chegar à proposta do partido da taberna de interditar o acesso de imigrantes aos cuidados de saúde gratuitos e à escola pública.
"O Governo refez as contas do Orçamento do Estado previsto para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e o saldo apresentado inicialmente como positivo é afinal negativo. O prejuízo será superior a 217 milhões de euros". Como, porque, porquê, a equação "Positivo - Neutro - Negativo" é aplicada a um serviço público tendencialmente gratuito? É todo um programa político onde só há um perdedor, o suspeito do costume, conhecido como "cidadão", ou "contribuinte", se bem que a melhor de todas, ainda que nunca invocada, seja "eleitor".
[Imagem "Britain's Prime Minister Margaret Thatcher and President Ronald Reagan share a laugh during a break from a session at the Ottawa Summit on July 21, 1981, at Government House in Ottawa, Canada"]
A morte de uma grávida a caminho do hospital numa ambulância motivou a queda de uma ministra, depois de dezenas de horas com directos nas televisões e intermináveis comentários de especialistas - do palerma Ferrão ao chalupa Zé Gomes passando pela picareta falante mano Costa, sobre a degradação do Serviço Nacional de Saúde, o caos nos hospitais e o caralho. Isso foi antes do dia 21 de Março de 2024. Depois foi-se embora a irresponsabilidade socialista e veio o "sentido de Estado" AD. Agora morrem seis pessoas à espera de uma ambulância no espaço de uma semana e é o Amorim no Manchester, o dilúvio universal em Valência, interrompido pela goleada dos lagartos ao City, é as eleições na América e o regresso do homem cor-de-laranja. Montenegro, agora alçado ao poder, diz que "não temos a certeza de que as mortes foram causadas por falta de assistência", ele que na oposição tinha a certeza de tudo e de mais alguma coisa e até em três meses ia resolver a coisa de que tinha a certeza. Marcelo II, de cognome O Velhaco, na FOX News, também conhecida por SIC Notícias, para os pés de microfone, escolhidos a dedo pelo menor coeficiente de inteligência para desempenharem a função de jornalista, sai-se com um "eu não gosto de falar de problemas específicos da governação" . A puta da lata! Ou não ter a puta da vergonha na cara é isto. Só morreram seis pessoas à espera de uma ambulância, "qual é a pressa?", como diria o outro que agora se olha ao espelho e se vê com cara de Presidente . Ainda se fosse um badameco qualquer à sopapada dentro do ministério do Galamba na ausência do ministro, aí o caso já piava mais fino e motivava uma saída do velhaco para comunicar um ralhete ao Governo na abertura do telejornal. Isto não é a morte de seis cidadãos, isto é a morte da decência. Da decência em política e da decência em jornalismo.
Foi operado no privado. Correu mal. Foi transferido para o público. Um belo resumo do negócio da saúde também conhecido por excelência dos hospitais privados. Também pode correr mal no público, mas fica no público. E soube-se porque era uma figura pública. Tivesse corrido mal no público e tínhamos as televisões todas na porta do hospital e as análises dos especialistas sobre a degradação do Serviço Nacional de Saúde e a urgência de transferir competências para o privado e as amarras ideológicas que o impedem.
No tempo do PS, e não foi há tanto tempo quanto isso, era "o caos nos hospitais", "a destruição do Serviço Nacional de Saúde", pior que o Deus me livre, agora, na normalidade adquirida e na tranquilidade nas televisões, a responsabilidade de tudo o que era pelouro do Governo passou a ser responsabilidade dos administradores hospitalares. Os agora "inimigos do povo" continuam a representar o papel de idiotas úteis que lhes foi atribuído. Pobres criaturas.