"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
No dia em que o palco ruiu por causa do trabalho de investigação de um "anónimo" no Twitter, o senhor Silva, diz-se que quer ser Presidente da República, sai-se com as redes sociais estão a "enfraquecer instituições". O timing é tudo, como sói dizer.
O Facebook, o Instagram e o WhatsApp estiveram em baixo e, descontando os agarrados que migraram para o Twitter à procura de "metadona social", o apagão obrigou os jornalistas a fazerem trabalho de jornalistas e a sabermos todos pela comunicação social o que acontecia no Facebook, Instagram e WhatsApp, ao invés de sabermos pelas três redes o que acontecia na sociedade e no mundo, dito por quem trabalha nos jornais, rádios e televisões. Por cinco horas voltámos a ser uma sociedade funcional, com a vantagem de não termos o discurso do ódio amplificado e difundido urbi et orbi.
Parecendo nascer condenada ao fracasso, na era do minimalismo Twitter, ainda assim com o número de caracteres duplicado em relação ao original, da imagem por mil palavras no Instagram ou do TikTok intuitivo - 'Shock and Awe', o Clubhouse tem no entanto tudo para se tornar a rede tuga por excelência, a República da Reunião de Condomínio, horas e horas de conversa pela noite dentro para se chegar a conclusão nenhuma.
Atacam o governo espanhol, socialismo radical, por estar a esconder os números da Covid-19, para logo a seguir criticarem o governo português, socialismo, por os estar a publicar sem truques, quando antes tinham elogiado o governo espanhol por ter tido dias seguidos sem mortes enquanto em Portugal se continuava a morrer, isto depois do elogio à Áustria, por abrir fronteiras a todos excepto a Portugal, assobiando para o lado ao contributo do governo austríaco para a propagação da pandemia na Europa ao ignorar e esconder o vírus para não prejudicar o turismo na neve, ainda antes de terem dado como exemplo países com menos infecções que Portugal, não referindo que somos dos que mais testa na Europa e no mundo e que o que conta nesta altura do campeonato são o número de mortes e de internamentos em cuidados intensivos e não o número de contagiados, para logo a seguir invocarem a Grécia, um governo democrático, do partido da tradição das contas marteladas que chamou a miséria da troika, a abrir portas ao turismo, a todos excepto a Portugal, como se ninguém percebesse que nos tempos que correm, do desemprego e do coma da economia, esta não fosse uma das frentes de batalha - viagens, lazer e tempos livres.
É este o estado da danação dos bonecos de ventríloquo da direita do tugão que pululam nas redes nos tempos que correm.
As redes sociais são boas quando usadas pelos avençados do partido do militante n.º 1 para largarem spin, fazerem acções de propaganda e manobras de intoxicação da opinião pública.
As redes sociais são boas para o grupo de comunicação social do militante n.º 1 estar nelas.
As redes sociais são boas para os jornalistas do grupo de comunicação social do militante n.º 1 virem para as redes sociais queixarem-se das redes sociais.
As redes sociais são boas para os órgãos de comunicação social do grupo de comunicação social do militante n.º 1 lucrarem milhões com o clickbait.
As redes sociais são boas para a televisão do militante n.º 1 fazer RT e linkar, de sábado a segunda, notícias saídas no jornal do militante n.º 1.
As redes sociais são boas para o pivô do telejornal noticiar "o movimento nascido nas redes sociais" e o que "o político tal disse nas redes sociais".
As redes sociais são boas, a começar pela "alvorada" dos blogues, porque democratizaram a opinião e, como consequência, a opinião pública deixou de só opinar o que interessava à opinião privada, patrocinadora de fazedores de opinião pagos pelo grupo de comunicação social do militante n.º 1.
Temos una doutora, presidente da Assembleia da República, que diz "inconseguimento"; temos um doutor, primeiro-ministro, que diz "malabarice" enquanto sacode a água "do pacote"; temos um doutor, ministro da Educação, que diz "interviu", curiosamente, e só curiosamente, os três do partido que mais desinvestiu na escola pública, na educação e na educação de adultos, nestes 40 anos de democracia, mas o viral nas redes sociais, o que quer que essa merda signifique, é um desgraçado "analfabeto" [entre aspas, sublinho] que teve de sair da escola antes do tempo para fazer pela vida e, quiça, pela vida da sua família, em protesto por um aumento salarial que não vem, um "inconseguimento" de quem já tem idade para estar reformado pelos padrões da senhora que é doutora e segunda figura do Estado, e que pensa que vergonha é um verbo.
«Facebook has become a dream space of judgment—a place where people you may know only in the most casual way suddenly reveal themselves to be players in a pervasive system of discipline.»
Pleno emprego alcançado através da erradicação, ou censura, das "redes sociais", estão explicados os dígitos de crescimento económico da Turquia, China, Arábia Saudita e et cætera.
Desempregados a quem já não sobra dinheiro para a prestação da casa, mais água e luz, mas que ainda vão aguentando a dose diária de feice coise e tuita para a veia, os manhosos.
Desempregados recentes na bloga e no feice coise e no tuita, os calaceiros, à procura de informação e opinião isenta, fora do circuito da comunicação social câmara de eco e capturada pela agenda ideológica que caiu sobre a Europa.
O "rolezinho", ou lá o que é, é o que menos importa. O curioso, ou nem por isso, sinais dos tempos, dos tempos não exclusivos brasileiros, é o protesto, sim, porque é de um protesto que se trata, ser marcado para um lugar público, de administração privada, com direito de admissão, e não para um lugar público de administração pública, uma praça, uma rua, uma avenida. Podíamos ir pelas novas centralidades e pela reconfiguração urbana, e vamos por aí, mas até por aí a agenda neo-liberal conseguiu impor as regras e marcar a agenda. Encerra-se o centro e mata-se o protesto. Fica muito bonito nas televisões e nas fotos do blog da The Atlantic, os 15 minutos wharolianos, inócuos e inconsequentes, talvez até contraproducentes, a moral da lei e da ordem espicaçada na opinião pública, "os bandalhos anarquistas e desrespeitadores" do direito dos outros à liberdade que vão para ali, para o shopping, estragar o direito ao negócio e o direito a gastar, e a passear, e a passear em família [muto importante!]. E prontes, a válvula de escape funcionou, coitus interruptus para os manifestantes, oportunidade para expor o "sentido de Estado" para a Lei e para a Ordem, e para o opinião privada escudada na opinião pública. A Naomi Klein "adivinhou" isto em No Logo.
Enquanto continuarmos todos a jogar o jogo segundo, e seguindo, as regras de quem criou o jogo…
«A nova palavra de protesto no Brasil chama-se "rolezinho"