"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
O Presidente da República do Estado laico que anda todo babado, e faz questão de misturar a baba com o cargo que exerce, com os milhões de euros do contribuinte enterrados na Jornada Mundial da Juventude a cargo da Igreja Católica, é o Presidente da República que alerta para para a pobreza e crise social em evento promovido pela Mota-Engil cujo CEO aufere anualmente um salário 73 vezes superior à média do que paga o seu grupo. Isto antes da bola, que foi ver a Braga, agora que os combustíveis estão a baixar há semanas consecutivas e se pode dar a esse luxo, e aproveitar o intervalo para lamentar, em directo para a televisão, ter perdido os primeiros 15 minutos do jogo e dar a táctica para levar de vencida o Uruguai na segunda parte.
No fim do jogo a televisão do militante n.º 1, SIC Notícias, foi "em directo para o Funchal, Cristiano Ró Náldo [assim mesmo, com dois acentos] não marcou mas os madeirenses estão contentes".
Escreve o jornal do militante n.º 1 na secção "Sociedade" que os "supermercados estão a colocar alarmes em produtos alimentares básicos, como latas de atum ou garrafas de azeite", "as pessoas estão desesperadas, escondem latas de atum e leite para comer ou dar aos filhos". Vira-se a página para o caderno "Economia" e ficamos a saber que a "inflação castiga todo o tipo de famílias: nas mais pobres pesam alimentos e habitação, nas mais ricas os restaurantes e hotéis". Os que vêem o atum e o azeite ao preço do whisky na prateleira do supermercado e os que por estarem quase pobres vão ter de abdicar de brincar aos pobrezinhos na Comporta. Isto podia ter outro título, sei lá, jornalismo de merda.
Até aos anos 80 do século passado era assim a paisagem nas colinas e montes que rodeiam a cidade de Setúbal [na imagem retirada do livro Fartas de Viver na Lama- 25 de Abril. O Castelo Velho e outros bairros], barracas feitas com as caixas dos carros Austin Morris que eram montados na fábrica de Setúbal, operários especializados, com salário e descontos para a Segurança Social, a produzirem carros para a exportação mas sem rendimento que permitisse a compra ou o aluguer de uma habitação condigna. A mulher, quando não ficava em casa, andava na casa de outros "a dias" ou na indústria conserveira quando o apito da fábrica tocava à chegada dos barcos. Os putos cresciam lá em cima, uns com os outros, ao Deus-dará, os índios.
47 anos depois dos 48 anos antes o estudo A Pobreza em Portugal – Trajectos e Quotidianos, da Fundação Francisco Manuel dos Santos diz-nos que em Portugal pelo menos 11% dos trabalhadores são pobres, apesar de terem trabalho e salário certo ao fim do mês. Mais de um terço dos pobres em Portugal são trabalhadores, a maioria dos quais com vínculos estáveis e salários certos ao fim do mês.
E isto tem um nome. E já cansa repetir. E cansa a ladaínha do "portugueses de bem", do "vai para a tua terra", do "povo honesto" que serve para desviar o foco, meter o miserável a olhar para baixo, contra o ainda mais miserável, aquele que na canção do Gabriel, O Pensador, tem como objectivo na vida "morar numa favela".
Porque a verdade é que o Euro é uma moeda cara e 1 kg de batatas que no dia 31 de Dezembro de 2001 custava 80/ 100 escudos passou a custar 1 euro no dia 1 de Janeiro de 2002 e um café que custava na mesma data 45/ 50 escudos passou a custar, também no dia seguinte, 50 cêntimos de euro, uma conversão directa em menos de 24 horas [do que é que o pequeno comércio a retalho e restauração se queixaram será sempre uma incógnita]. Dir-me-ão que as pessoas não se governam só a café e batatas, pois não, mas é muito por aqui que a coisa começou.
Outra coisa que o estudo nos diz é que vale a pena apostar e investir na educação porque com mais formação e mais habilitações literárias as probabilidades de encontrar um emprego mais remunerado são muito maiores.
O que o estudo não nos diz é a média salarial dos portugueses, nem a quantidade de portugueses que aufere o salário mínimo nacional, nem a constituição dos agregados familiares dos portugueses que vivem com a média e o mínimo salarial em Portugal. É que dá muito mais jeito à narrativa liberal instalada no Banco de Portugal dizer que os madraços dos tugas são uns gastadores que não acautelam o futuro e insistem em continuar a viver acima das suas possibilidades. É que alguém que ganhe o salário mínimo nacional, se não tiver filhos, nem pagar renda da casa, nem água, nem luz, e for trabalhar de Inverno com roupa de Verão, depois de um jantar de bolacha Maria na véspera, consegue aforrar a pensar nalgum contratempo da vida ou para acautelar a velhice.
Em quem votou Américo Amorim nas Presidenciais de 2006 e de 2011? Em quem vai votar nas Presidenciais de 2016, o homem a quem 2 – dois – 2 milhões de pobres não superam a fortuna e que em 2009, quando já estava no Top of the Pops dos mais ricos, não teve pejo em despedir 195 a ganhar o salário mínimo nacional, por antecipação ao que a crise global iria «certamente evidenciar»? Em quem vota Américo Amorim?