"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Por alturas dos 80s, nos verões de Setúbal, era uso haver festivais de cinema e teatro ao ar livre nos claustros do Convento de Jesus, autêntico serviço público de divulgação cultural a preços simbólicos, da uva mijona como sói dizer-se. Nos intervalos e/ ou no final da soirée havia sempre magotes de barbas mal-amanhadas, sapatos pé de pato em camurça e o Jornal das Letras debaixo do braço, eles, de cabelos compridos sem ver pente e pinça de esticar, 'late Janes Joplin', e vestidos indianos, elas, que debatiam interpretações filosóficas e políticas das peças em cena ou das fitas projectadas, para desenjoar o estarem sempre a falar da quão maravilhosa era a MPB, música popular brasileira.
Ouvia-os, eu adolescente, e pensava "wtf?! como é que estes caralhos conseguiram ver esta merda no filme ou na peça que, se falarem com o autor/ realizador, nem o próprio viu e até fica tipo Sá de Miranda, "m' espanto às vezes, outras m' avergonha"? E lá ficavam horas a chatearem-se uns com os outros até à próxima projecção/ representação onde voltava tudo à casa de partida.
Vem isto a propósito da interpretação que leio amiúde na imprensa escrita e nas redes e de uma dúvida sincera que me atormenta: Marco Fidalgo, autor da estátua do Vieira, padre, retratou os índios como crianças ou aquilo são mesmo crianças índias ou até se os índios quando nascem em terra brasis é já em tamanho adulto?
"O mostrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueu-se a voar; À roda da nau voou três vezes, Voou três vezes a chiar, E disse: Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tectos negros do fim do mundo? E o homem do leme disse, tremendo: El-Rei D. João Segundo!
De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço? Disse o mostrengo, e rodou três vezes, Três vezes rodou imundo e grosso,
Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo? E o homem do leme tremeu, e disse: El-Rei D. João Segundo!
Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de tremer três vezes: Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um Povo que quer o mar que é teu; E mais que o mostrengo, que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo; Manda a vontade, que me ata ao leme, De El-Rei D. João Segundo!"
O pontapé de saída havia sido dado por Joacine Katar Moreira quando, no primeiro dia como deputada, papagueou qualquer coisa sobre o colonialismo e a escravatura enquanto posava à sombra do óleo de Domingos Rebelo no Salão Nobre da Assembleia da República com a representação da recepção de Vasco da Gama pelos emissários do Samorim de Calecute. Tudo a ver.
Agora, à boleia da revisão da História em curso nos Estados Unidos e em Inglaterra, um qualquer imbecil vandalizou a estátua do Padre António Vieira em Lisboa, precisamente ele, uma voz à frente no seu tempo, contra a escravatura e defensor dos índios brasileiros, perseguido pela Inquisição. É o triunfo da ignorância.
“Não basta que as coisas que se dizem sejam grandes, se quem as diz não é grande. Por isso os ditos que alegamos se chamam autoridade, por que o autor é o que lhe dá o crédito e lhe concilia o respeito”
“Se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro”