"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Quando era teen, aí por alturas do PREC e PNEC (Período de Normalização Em Curso), havia em Setúbal uns maduros nunca percebi bem quem, se a Câmara se o TAS (Teatro de Animação de Setúbal) se organização conjunta, adiante, que se dedicavam a organizar festivais de cinema ao ar livre nos claustros do Convento de Jesus durante o Verão, com ciclos temáticos: Griffith, Buñuel, Capra, Ford, Fellini, De Sica, Resnais, uff… Bela escola de cinema eu tive. E também festivais de teatro com grupos que não lembrava ao Molière, do estrangeiro e de Berlim para lá e tudo, com nomes impronunciáveis até para os próprios, e nessas noites era preciso colocar uns auscultadores nas orelhas para a tradução simultânea e para não ficarmos todos só a ver os bonecos, a mais das vezes peças da treta, mas a que toda a gente batia palmas, muitas, revolução e internacionalismo e o caralho.
A merda, o que me chateava mesmo mas mesmo, era que nos intervalos e no final se juntavam magotes de gaijos barbudos com boinas à Ché e de gaijas com vestidos indianos e com o cabelo sem ir ao cabeleireiro e com pelos grandes nos sovacos, a fazer interpretações e análises do arco-da-velha que também é nome de disco da banda que toda aquela gente gostava, a Banda do Casaco, sobre o significado da peça ou do filme, género, ou “tipo” como dizem agora os putos: “aquela parte em que o fulano das não sei quantas dá um tiro no outro é do ponto de vista freudiano…”, “não não porque segundo Marx…”, “estás enganado, porque o materialismo dialéctico…”. Foda-se, de cada vez que me lembro que até eram capazes de discutir o significado de um peido n’A Grande Farra do Ferreri…
E dei uma volta do caraças só para dizer que de cada vez que Cavaco Silva fala juntam-se uns magotes de gaijos barbeados e engravatados e com cabelo comprido atrás e um bocadinho por cima da orelha, e gaijas com vestidos Gucci e Saint Laurent e com o cabelo arranjado e depiladas e camadas de sub-capa na fachada, à porta dos blogues e do Twitter a interpretar o que é que o homem do leme quis realmente dizer. Fazem-me lembrar os tais lá nos ciclos de cinema e teatro.
Aqui para nós que ninguém nos ouve: nem o próprio sabe o que diz.
Quando era teen, aí por alturas do PREC, ia pela calada da noite, mais a restante maralha, fanar bandeiras às sedes dos partidos. Os alvos preferidos eram as do PSD e as do MRPP e, quando não eram fanadas, eram trocadas – hastear as “laranjas” nos “vermelhos” e os “vermelhos” nas “laranjas”, sem sequer sonharmos que pouco tempo depois seriam “dois em um na unidade do Espírito Santo”.
Disse-me uma vez o meu pai ao ver a minha invulgar colecção, e desconfiando da minha dedicação à causa vexilológica: “Havias de ser apanhado e levar umas valentes sarrafadas no lombo que era para ver se aprendias a ser homenzinho”. Era disso que se tratava: criancice.
Durante as Presidenciais de 1976 e no tempo em que o pincel tomava conta de tudo o que era parede limpa, de uma noite para o dia Setúbal apareceu pinchada com OTELO por tudo o que era sítio. Na noite seguinte, mais propriamente da noite seguinte para o dia depois, alguém andou pela cidade a colocar um apóstrofo ente o O e o T e a fechar o E em O. Resultado: O’ TOLO.
Ali no café da extrema-esquerda, onde nos idos do PREC nem o pessoal do PCP se atrevia a entrar, estava um fulano tranquilamente sentado a beber uma cervejinha, com um pin da UNITA na lapela.
Em Junho de 1980 fui ao pavilhão do Dramático de Cascais ver o primeiro concerto de Lou Reed em Portugal na companhia do Lou Reed. Entretanto, drogas à mistura e o caralho, o LR entrou na Twilight Zone e só vai aparecendo com intermitências e apesar de não se conseguir ter uma conversa de jeito com ele… enfim, é o Lou Reed.
Ontem ia na rua com a minha filha e encontrei o dito cujo do LR. Conheces o Lou Reed? Não… porque é que o chamam assim? Porque ele era fanático do LR e quando fomos ao concerto a Cascais levou um frango assado na mochila e ia comendo encostado ao palco no tempo em que se podia encostar ao palco nos concertos e volta e meia mandava uma perninha ou uma asinha para cima do palco e dizia “toma lá Lou Reed que deves estar cheio de fome e isto é frango do Isidro dos Frangos em Setúbal” e lá vinha o roadie com cara de mau pontapear o frango para fora do palco.
E é verdade sim senhor! disse o LR e ainda tenho aqui o bilhete do concerto na carteira. E tinha. E mostrou à miúda. E lá foi ele para a Twilight Zone até à próxima aparição num dia destes aí numa rua qualquer.
Não é à toa que alguém recebe a alcunha de Lou Reed.
(Isto de escrever "à Saramago" sem pontuação é fixe!)
Quando andava na escola primária e a disciplina Moral & Religião era obrigatória para toda agente (Testemunhas de Jeová incluídas), e de boa cara, caso contrário o meu pai tinha a PIDE à perna, o padre zelador da moralidade e da religiosidade de cada infante naquela escola, oferecia, aos mais bem comportados da sala, uns santinhos em papel para colocar em cima da cómoda ou da mesa de cabeceira, para alumiar a azeite pelas alminhas, por algum familiar no Ultramar, ou, na "modernidade" Marcelista, para marcar livros. Nunca ganhei nenhum.
Uma das recordações mais fortes que tenho dos tempos do Conta-me Como Foi é a da RTP1 a preto-e-branco e a RTP2 a chuva-e-nevoeiro, que é como quem diz, o meu pai em cima do telhado a girar a antena, e a minha mãe cá em baixo à varanda a gritar azimutes. Era uma guerra perdida.
Havia grandes barrigadas de Fórmula 1 e de rugby, e filmes com o Fred Astaire e a Ginger Rogers ao domingo à tarde. Tarde de Cinema, de seu nome.
E na Páscoa horas infindáveis de Via-sacra, com o Papa à nora no Coliseu de Roma. Era muito emocionante e cheio de acção. Ficou cá marcado. Ainda há bocado quando liguei a televisão fiquei um bocado à espera das imagens e da seca, até cair na realidade 35 anos depois e 50 canais a mais.
E só por isto já valeu a pena ter havido 25 de Abril. Praise The Lord!
Havia em finais dos anos 60 princípios dos 70 do século passado (!), mais ou menos a época em que decorre a acção do Conta-me Como Foi, uma sala de cinema a 5 tostões a sessão dupla aos domingos à tarde. Era num anexo à igreja de S. Sebastião, ali na parte detrás do cemitério da Nossa Senhora da Piedade, mais ou menos entre o Bairro das Fontaínhas e o bairro de S. Domingos, em Setúbal. O projeccionista era o padre, que nos dispensava de prédicas e homilias para passar logo à acção, e nós sentados em bancos corridos de madeira, tão velhos como a igreja e duros que nem cornos.
Íamos em bandos ver filmes do Sandokan, e do Robin dos Bosques com o Errol Flynn mais o seu bigode, e do Jóni Beiços de Mula na pele de Tarzan, e também umas cobóiadas onde morriam índios a dar com um pau, e filmes para rir com o Totó, e também deste senhor que faz agora 70 anos. Parabéns!
Vamos lá dar um ar institucional a isto: “Encontra-se disponível on-line para consulta no site da Flur – a melhor loja de discos da Península Ibérica – a minha playlist”, espartilhada pelo número 10. Pediram-me 10 discos marcantes e foi uma ginástica e peras! Mesmo 20 não chegavam. Ficaram – ficam – a faltar alguns que não entraram porque não, e outros porque era hoje e porque se fosse amanhã a escolha já era diferente.
Aqui há uns tempos atrás, usava eu calções e ia à laranja às quintas no Rio da Figueira, chegaram os pretos a Setúbal. Vinham das províncias ultramarinas que era assim que se chamavam antes de se chamarem ex-colónias e muito antes de se chamarem PALOP`s.
Os pretos que se chamavam “senhores-de-cor” porque chamar preto “era feio”, vinham trabalhar para as obras e usavam calças garridas à boca-de-sino, exageradamente à boca-de-sino para os padrões continentais do Portugal que ia do Minho a Timor ,e que ainda ensinava o Brasil na escola primária, apesar do Brasil ser independente há mais de 300 anos. Os pretos que eram “senhores-de-cor” eram uma gente estranha que na rua cumprimentava toda a gente, conhecesse ou não a pessoa. E toda a rua parava para ver passar um “senhor-de-cor”, coisa só conhecida dos filmes amaricanos.
Passados tempos, não muitos, os pretos que eram “senhores-de-cor”, mandaram vir as mulheres para trabalhar nas limpezas, camarárias e particulares, e ao contrário dos maridos foram sempre as pretas, e nunca as “senhoras-de-cor”, vá-se lá saber porquê.
À excepção de quando passavam na rua, nunca ninguém deu fé dos “senhores-de-cor” e das suas mulheres, as pretas, que deviam ser pessoas muito recatadas e/ ou envergonhadas. Só assim se explica que tenham tido filhos e filhas sem ninguém dar por isso. Até começarem a aparecer nas aberturas dos telejornais e nas primeiras páginas dos jornais. Eu por exemplo, nunca andei na escola nem brinquei com um filho dum “senhor-de-cor” e duma preta.
Depois, muito depois, chegaram os brasileiros e os “do leste europeu”. Vêm fazer exactamente o mesmo que os “senhores-de-cor” e as suas mulheres pretas fizeram. Só que são diferentes, e não é na cor da pele, porque brasileiros pretos é o que por aí não falta; ucranianos pretos não sei se há. Não são recatados e/ ou envergonhados e toda a gente sabe que têm filhos mais as suas mulheres. E falam português e os filhos brincam com o meu filho ao domingo de manhã, num parque que está exactamente no sítio onde dantes havia uma quinta onde eu quando usava calções ia à laranja no Rio da Figueira.
(Na foto, roubada já não me lembro onde, Setúbal vista da Doca do Comércio)
Enganar-me em Roma e em vez de apanhar o comboio da meia-noite Trieste-Nápoles, apanhar o das cinco para a meia-noite Nápoles-Trieste e dormir toda a noite nos solavancos do carril. Ser acordado de manhã pelo revisor e, ao pôr os pés no chão, ver hasteada uma bandeira tricolor com uma estrela vermelha ao centro. Foi assim que conheci a Jugoslávia.