|| Rewind
A imagem que ficou foram as tardes de chuva a preto-e-branco, sempre. A minha mãe na cozinha a passar a ferro eu à mesa a fazer intermináveis cadernos de contas com tabuadas do 7 do 8 e do 9. A rádio, também ela a preto-e-branco, baixinho num programa em que o genérico era o chamamento de um soldado na guarita: “Está aleeeeertaaa?!” e respondia outro “Alerta estáaaaa!”, depois os telefonemas: “Esta música para o meu querido filho que está na Guiné”, outra “Dedico a canção ao meu namorado que está em Angola no Batalhão de Caçadores nº…”, outra ainda “Com saudades da mulher e filhos para o soldado tal em Moçambique na Companhia tal e tal”.
E eu na mesa da cozinha ao lado do ferro de engomar que comandava os movimentos da minha mãe: nove vezes um nove, nove vezes dois dezoito, nove vezes três vinte sete (…) nove vezes sete… nove vezes sete… nove vezes sete… Sai carolo com toda a força da mão livre, a que segurava a gola ou a manga em cima da tábua de engomar, nove vezes sete sessenta e três.
Lembrei-me disto há bocado quando vinha a conduzir e me saiu a Maria José Valério na rifa do auto-rádio:
«Cuidado, rapazes, cuidado muito cuidado; há mulheres que de tudo são capazes, e a fortuna não está sempre ao nosso lado. Não se casem não, rapazes.»
(Imagem de Jean-Jacques Palix)