"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
A diferença nas reacções às palavras da então ministra da Agricultura, Maria do Céu Albuquerque, quando disse que a covid até podia ter consequências bastante positivas nas exportações portuguesas do sector agro-alimentar para os mercados asiáticos - do linchamento nas redes, a "insensibilidade e desumanidade socialista", ao tiro ao alvo pelos comentadeiros com lugar cativo no prime time televisivo; para o Portugal que é beneficiário líquido da situação vivida a nível internacional, por ser visto como longínquo da guerra na Ucrânia, mais inteligência necessária para saber aproveitar essa ocasião, por Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, a pontuar cada frase com aquele característico sorriso de orelha a orelha, vejam como eu sou bué iluminado - é assim mesmo que as coisas são, foi um bocado rude e directo mas contra factos não há argumentos, temos de aproveitar, Presidente visionário, em tempos de guerra não se limpam armas; pelos mesmos de sempre - nas redes e nas televisões.
O Presidente que aparece cinco, seis vezes, no telejornal, às vezes mais, a falar sobre política europeia, sobre futebol, num tasco em Cascais ou na flash interview da Selecção, ou sobre um cão que cagou no passeio, queria mais espaço mediático para apertar com Costa. "Execução da bazuca, descentralização e orgânica do Governo". E, como "quem não tem vergonha [nem respeito por todos os portugueses de quem é Presidente] todo o mundo é seu", já fala em Portas e Mendes como candidatos à sucessão.
Marcelo, que na primeira oportunidade que lhe surgiu dissolveu o Parlamento com a desculpa esfarrapada do chumbo do Orçamento do Estado; Marcelo, que conspirou activamente para substituir Rio por Rangel na liderança do PSD; Marcelo, que contra a opinião de todos os partidos com assento parlamentar atrasou ao máximo que lhe foi possível as legislativas para dar margem à liderança laranja saída das directas que, para mal dos seus pecados, calhou a Rui Rio, é o Marcelo que aproveita o anunciado, com mais de um mês de antecedência, discurso da tomada de posse do Governo, bocejante, entediante, sem fio de jogo qual futebol da Selecção Nacional de Fernando Santos, para extrapolar a importância europeia de António Costa e ameaçar com a bomba atómica da dissolução parlamentar caso o primeiro-ministro tenha a veleidade de sonhar com um lugar na nomenclatura europeia. Marcelo o ressabiado-mor da Nação caído de beiços nas mãos de uma maioria absoluta parlamentar.
O estado da Nação: um Presidente da República que aparece na zona das entrevistas rápidas, reservada a jogadores e treinadores, para comentar um jogo da selecção; um bando de parolos eleitos, constituído grupo parlamentar, que posa para a foto devidamente fardados.
Cai uma avioneta em cima de um hipermercado e Marcelo chega lá primeiro que os bombeiros, descarrila um eléctrico no Chiado e Marcelo chega primeiro que a polícia [ia a passar...], pode haver erupção de vulcão nos Açores e Marcelo anuncia que vai a caminho. Marcelo chega às 17 horas do continente aos Açores para regressar ao continente às 17 horas dos Açores ao continente, não foi atrapalhar, foi "dar força" às populações. Marcelo é aquele gajo que vai na auto-estrada e pára para ver o acidente em sentido contrário, do outro lado do separador central, e com isso provoca um engarrafamento colossal atrás de si desde o tabuleiro da ponte até ao Casal do Marco.
Quando era puto havia no bairro um pateta, sempre "a rir sem ser por nada", como na canção do Zeca. Ouvia travar a fundo na estrada e estava lá para ver o acidente, falava-se que tinha afundado um bote na doca e lá ia ele a correr ladeira abaixo, uma pessoa foi colhida por um comboio e lá andava ele no meio da linha a espreitar por cima dos bombeiros, "mas que grande reinação", também como na canção do Zeca. Além de que marcava presença em todos os funerais e velórios mesmo não conhecendo o defunto. Era conhecido como o maluco do cemitério.
Cada notícia do telejornal termina com um comentário de Marcelo. E isto não é normal para alguém que acabou de perder umas eleições legislativas depois de ter perdido as eleições para a liderança do partido a que pertence.
Marcelo, mais rápido que a própria sombra a lamentar a morte dos anti-fascistas, lutadores pela liberdade, George Michael e Sara Carreira, e a endereçar condolências à família, ignora a morte do cantor pop Jaime Serra. É o que temos.
Marcelo Rebelo de Sousa, que conspirou e tomou partido para mudar a liderança do PSD e que já tinha o Parlamento dissolvido na cabeça ainda antes do chumbo do Orçamento de Estado, vê-se relegado para o papel de rainha de Inglaterra, uma tortura para o intriguista-mor da Nação, que saltita de telejornal em telejornal a cada 10 minutos para falar de tudo e mais um par de botas, sem capacidade de influenciar a governação de um António Costa sem a desculpa dos parceiros de "geringonça" que lhe tolhiam os movimentos.
Um clássico. De cada vez que Marcelo, o grande educador da Pátria, predica à Nação, ficarmos sempre na expectativa de ser o dia em que não há recurso ao Livro da 3.ª Classe, dos quase mil anos de história, do país do Minho a Timor, dos grandes feitos para o mundo, do Brasil, da África, da língua de Camões, os indígenas todas em tronco nu, de tanga e saias de capim, agradecidos pela evangelização. Em vão. Ainda não foi desta e tudo o resto é acessório quando os pormenores fazem a diferença.