"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
O Partido Socialista, "pai" da direita em democracia, que aproveita todas as oportunidades para "morder" o PS e a democracia. Morreu o CDS que inventou o slogan do fundador do PS candidato presidencial. Quarenta e seis anos do 25 de Abril resumidos num óbito.
As "divergências profundas" do PCP em relação a Mário Soares são precisamente aquilo que faz com que Mário Soares seja profundamente respeitado e considerado e tenha um lugar de destaque na história de Portugal. E dizem estas coisas com a maior das naturalidades sem sequer se aperceberem que se enterram até ao pescoço fora do inner circle comunista devoto.
[Imagem "A underground transition", 1979, Igor Palmin Tashkent]
Uma vez, aí por alturas de Mário Soares eurodeputado, fui passar umas mini-férias da Páscoa a casa de uns amigos na Praia da Rocha, uns dias de sol, frios como o camandro, num Algarve inusitadamente deserto, até de velhos bifes e holandeses, e com o mar chão, como se diz na doca das Fontainhas em Setúbal, flat, como dizem os betos no Guincho. Só para sacudir o pó e tirar as teias de aranha levei o fato e o equipamento de mergulho. Um belo dia saí, ainda escuro e com toda a gente a dormir, meti-me no carro e cheguei à Praia do Vau por volta das seis da manhã, para aproveitar a maré e ver como era ali o fundo do mar. Estava eu na praia a vestir o fato e vejo vir, lá ao fundo, alguém com um cão atrás, a aproximar-se pela espuma da água [cão que posteriormente vim a saber ser um vadio que vivia ali à roda dos restaurantes e bares]. Mais uma melga daquelas que não podem ver um neoprene que não venham fazer perguntas de quem não sabe distinguir um robalo de uma tainha na pedra do mercado, pensei. Estava já equipado e a encher a bóia torpedo quando ouço “bom dia!”, levanto a cabeça e era o Mário Soares, sozinho mais o belo do rafeiro vadio a abanar o rabo. “Bom dia!” respondo eu. “Já aqui tão cedo?”, “é para aproveitar a maré...”. “E o meu amigo não tem medo do frio?” e eu “quem tem medo compra um cão...” e ele “exactamente, mas este não é meu” apontando para o dito “nem lhe sei o nome”. Risos. “E o meu amigo é daqui?”, “não, sou de Setúbal” e ele atalhando “boa terra e terra de boa gente” e eu “às vezes...” risos, e continuando “estou em casa de uns amigos, e tal, venho dar banho ao fato, que aqui não deve haver vivalma debaixo de água desde que começaram aqui a construir casas por tudo o que é encosta e falésia sem respeito nenhum pela natureza e pelo ecossistema e a massificar o turismo” [Mário Soares tem uma casa mesmo ali na rampa de acesso à praia] e ele “é pá... é pá...”, risos de ambos. “O meu amigo vai ver que vai fazer uma bela duma pescaria e eu vou estar aqui à sua espera para a irmos comer ali àquela casa construída na encosta”, disse ele a apontar para a dita e risos de ambos. “Combinado”, remato eu enquanto acabava de calçar as barbatanas. Meto-me à água e não é que numa das zonas mais batidas do país, onde nem as pulgas do mar aparecem, ali à roda das rochas do lado direito da praia, sem sair do pé, no espaço de meia hora apanhei a maior sacada de chocos de toda a minha vida?! Era disparar e armar, disparar e armar, disparar e armar, deixei de apanhar porque era um exagero tanto choco para sete ou oito pessoas dentro de casa lá na Rocha e ainda assim fizemos duas refeições. Quando saí da água o Mário Soares já lá não estava, não chegou a ver e não chegou a comer.
O "radicalismo político" de Mário Soares que os salvou durante o PREC quando já havia destinada a cada militante do partido uma árvore com uma corda pendurada com o respectivo nome escrito.
O "radicalismo político" de Mário Soares que lhes deu pela primeira vez acesso ao poder no II Governo Constitucional para desde então passarem a contar para a "marcha do balão e do arquinho da governação" e do "sentido de Estado".
Ricos e mal-agradecidos e sem terem onde cair mortos.
A diferença entre Mário Soares e Cavaco Silva é que Mários Soares já não sendo Presidente é o “senhor Presidente” e Cavaco Silva é Cavaco Silva, quando não só “o Cavaco”, a quem ninguém se levanta à chegada nem tira o chapéu à passagem.
Um Governo em uníssono e todos os ministros a solo podem criticar as decisões do Tribunal Constitucional que é a democracia e a liberdade de expressão e o coise.
Os deputados da maioria que enfeita o Governo na Assembleia da República podem questionar a competência dos juízes do Tribunal Constitucional e até deixar cair aqui e ali que não foi para isto que foram nomeados pelos partidos da maioria que enfeita o Governo na Assembleia da República que é a democracia e a liberdade de expressão e o coise e o coise e tal.
O bochechas, revoltado e com pouca paciência, não pode dizer o que lhe vai na alma nem apontar o dedo ao conluio entre a Justiça, das fugas de informação cirurgicas, e a imprensa, na figura de um jornal e de uma televisão, que são declarações "indignas de um [antigo] Presidente", de uma República presidida por um Presidente que maquina, em conjunto com a imprensa, na figura de um jornal, uma inventona de escutas aos seu gabinete de Presidente que suporta um primeiro-ministro que suporta uma ministra da Justiça que não tem pudor em atirar lama e denegrir o bom nome de dois funcionários da Polícia Judiciária para sacudir a água do seu pacote de incompetência profissional e política.
A turba reage por impulso e tem memória curta e eles valem-se disso.
Quando os trotskistas, os da extrema-esquerda, os "irresponsáveis", os "aventureiros", os "arruaceiros", o terror dos mercados, da Alemanha, do FMI e da Comissão Europeia, não necessariamente por esta ordem, assumem e incorporam o discurso que, aS/ aB [antes de Schröder e antes de Blair], costumava ser o discurso da esquerda moderada, o discurso da Europa dos povos, o discurso da Europa do Estado social, a Europa construída para travar a ascensão dos radicalismo, da extrema-esquerda incluído. E parar pensar?
Mário Soares também disse que "estamos a caminho de uma nova ditadura" mas, como pelo seu passado e pelo seu percurso político, era demasiado imbecil acusá-lo de estar a legitimar uma ditadura, e como tinham de reagir, de dizer qualquer coisa, invariavelmente na linha do ou entra mosca ou sai asneira, saiu asneira, e pegaram na legitimação da violência, um tema sempre caro à Direita, mui defensora da ordem e da legalidade e das hierarquias e de cada macaco no seu galho e expert em usar a violência legislativa do Estado sobre os cidadãos e a violência, legitima e legitimada, das polícias para a fazer acatar. Polícias que parece, agora, lhe estarem a fugir ao controlo, o que vem baralhar as contas e não deixa até de ter a sua piada.