"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Há 40 anos a fazer mais, com menos custos e melhores resultados, pela integração europeia, do que os milhares de burocratas, no ar higienizado dos gabinetes em Bruxelas, pagos pelos impostos dos cidadãos europeus.
[A imagem é daqui por não saber onde param os meus]
Em 1983, quando fiz o meu primeiro Interrail, à parte o ter perdido os primeiros comboios até me habituar à ideia que havia sítios onde os comboios chegavam e partiam a horas, o que me chamou a atenção foi o não haver passagens de nível em países como França e Itália. E ninguém atravessava a linha, porque até nos apeadeiros mais manhosos havia uma passagem subterrânea para passageiros.
Entretanto passaram 26 anos, entrámos na Europa, mas a Europa não entrou em Portugal, e os milhões para o TGV andam por aí. Não é que seja contra o TGV, antes pelo contrário, é a nossa mania de “queimar etapas”.
(Imagem The Southend Pier Train fanada no The Times)
Enganar-me em Roma e em vez de apanhar o comboio da meia-noite Trieste-Nápoles, apanhar o das cinco para a meia-noite Nápoles-Trieste e dormir toda a noite nos solavancos do carril. Ser acordado de manhã pelo revisor e, ao pôr os pés no chão, ver hasteada uma bandeira tricolor com uma estrela vermelha ao centro. Foi assim que conheci a Jugoslávia.
Ao ler os matutinos de hoje, deparei-me com uma notícia comum a todos eles: que o agente secreto líbio Abdel Basset al-Megrahi, condenado a uma pena de prisão perpétua pelo atentado contra um voo da Pan Am que se despenhou na localidade de Lockerbie na Escócia no ano de 1998 e que matou 270 pessoas, vai poder recorrer pela segunda vez para o Supremo.
Cidade de Veneza, numa noite qualquer desse Setembro de 1998.
Eu andava a fazer um Inter-rail sozinho. A companhia de viagem há muito combinada e acertada, na véspera roeu a corda e não havia mais ninguém ali há mão; que se lixe vou sozinho. O objectivo era Itália, Jugoslávia e Áustria. Acabo a morrer de amores por Itália e por lá fico um mês. A Áustria e a Jugoslávia podem esperar.
Cidade de Veneza, numa noite qualquer desse Setembro de 1998. Um calor dos diabos. Estou sentado na escadaria da estação de comboio a desfrutar aquela vista espectacular sobre a cidade dos canais – quem já chegou a Veneza de comboio sabe do que estou a falar, uma pintura impressionista ao vivo, que além das cores tem som. Acabei de conhecer um casal de venezuelanos, chegados na véspera da então Jugoslávia via Trieste, e ali estamos a trocar impressões, experiências e dicas para a viagem. Atrás de nós, dentro da estação, uma azáfama. O Expresso do Oriente vai partir dentro de uma hora. O comboio, os empregados, as pessoas, e até as roupas, exactamente como no filme Crime no Expresso do Oriente e baseado no livro de Agatha Christie. Em fracção de segundos, e sem hipótese alguma de alguém conseguir esboçar qualquer movimento, toda a estação de comboios e a praça fronteira ficam cercadas por carabinieri de cara tapada e armas em riste. Tão rápido como inesperado. A reacção das centenas de pessoas presentes foi a oposta ao pânico. Silencio absoluto de sons e movimentos. Parecia que alguém tinha desligado o interruptor que dava vida à praça e às pessoas. Aparecem uns polícias com aspecto humano – de fato e gravata –, identificam-se e pedem a todos os presentes para que os acompanhem.
Italianos comuns, turistas, freaks, executivos, hippies, funcionários dos caminhos-de-ferro, punks, os VIP’s do Expresso do Oriente, sei lá! Tudo misturado dentro das ramonas; parecia um filme. Destino: um qualquer pavilhão desportivo na cidade vizinha de Mestre, onde nos aguardava outra comissão de recepção, atrás de computadores, em cima de um palanque previamente montado numa das extremidades do recinto. Passaportes, BI’s e outro tipo de identificação dos engavetados, recolhidos e amontoados em cima das secretárias numa interminável resma. Um a um, com uma calma alentejana, vão sendo retirados do monte pelo carabinieri. Digita qualquer coisa no teclado, olha para o monitor, e depois, se estiver tudo conforme, grita o nome do proprietário em voz alta, devolve o documento e manda o desgraçado à vida. Esta era a parte mais ansiada por todos os que tinham ido dentro. Não porque estivessem em stress para sair dali para fora, mas porque o momento era hilariante. A já mítica queda dos italianos para as línguas, ali, ao vivo e a cores! Imaginem o nome de um alemão, de um francês, ou até de um inglês, dito em voz alta com sotaque spaghetti, e a ecoar pelas paredes. Era a gargalhada geral! Stand-up comedy ao vivo, para desespero do polícia.
Ao meu lado um norte-americano não se ria nem por nada. Estava constantemente a gritar cá do fundo: “Sou um cidadão americano!”; “Não há direito!”; “Sou um cidadão americano!”; “Respeito!”. O carabinnieri, já pelos cabelos com a gargalhada geral, chama o americano e pergunta: “Qual é o teu passaporte?”; o americano olha para trás e esboça um largo sorriso de superioridade, onde era possível ler: “Olhem para mim! O respeitinho aos nativos da maior potência do globo é muito bonito!”. Após uma interminável busca conjunta ítalo-americana pela montanha de documentos, e encontrado o passaporte, o carabinnieri coloca-o na base da resma e envia o americano de volta à procedência; ou seja, lá para o fundo do pavilhão; “Aguenta que é para não seres parvo!”, foi o que todos lemos nos olhos do agente da autoridade. Silêncio geral. Acabou o gargalhar. O americano foi o último a ser atendido.
Já cá fora, de conversa com o motorista da ramona que nos havia de trazer de volta a Veneza, fiquei a saber que a rusga se devia às suspeitas de que um dos intervenientes nos atentados de Lockerbie pudesse estar em Veneza, a tentar sair de Itália com destino ao Médio-Oriente.
Por isto que acabei de contar, quando ouço ou leio o nome Lockerbie, Veneza em Setembro de 1988 vem-me à memória.