"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Talvez agora consigam perceber o que Manuela Ferreira Leite quis dizer. A xenofobia e o racismo existem, são reais, mas também têm as costas largas. E a senhora não diz só barbaridades.
(Imagem via Archivo Fotografico Fondo Giovanni Bortolotti)
De estranhar – ou nem por isso – é que para assuntos desta natureza seja necessário haver uma directiva comunitária. Mas tanto melhor. Embora atendendo ao que aí vem de obras públicas, 2 anos para a implementação me pareça um prazo demasiado largo.
Inevitavelmente teria de haver um “mas” (para o caso um “pero”), colocado pelos destinatários da medida. Não lhes cheira.
Ainda sou to tempo em que um vulgar estudante português, portador do cartão InterRail, via recusada a entrada em Inglaterra por suspeita de subterfúgio para imigração ilegal. Comigo, pessoalmente, nunca aconteceu, mas tenho amigos que passaram por essa situação. E os que conseguiam entrar – e foi o meu caso uma vez, não em Inglaterra, mas em França – não se livravam de um minucioso interrogatório efectuado pelo guarda fronteiriço; ao que vinham, quanto tempo iam ficar, quanto dinheiro traziam. Note-se: não iam (os) clandestinamente numa barcaça; não iam (os) clandestinamente dentro de um contentor dum camião TIR; iam (os) de InterRail!
Vem isto a propósito dos imigrantes clandestinos provenientes de Marrocos que deram à costa na margem sul da West Coast of Europe.
Ouvi nos telejornais, uma advogada de nome Manuela Costa, classificá-los como “vítimas de auxílio à imigração ilegal”; ouvi nos telejornais, um deputado do Bloco de nome José Soeiro, afirmar que repatriá-los significa “devolvê-los à miséria” e deixá-los “à mercê das redes de tráfico e auxílio à imigração ilegal que eles ajudaram a denunciar”.
Vítimas? Quais vítimas?
O termo vítima vem do latim victimia e victus, vencido, dominado. No sentido original, vítima era a pessoa ou animal sacrificado aos deuses no paganismo. Actualmente, a palavra vítima estende-se por vários sentidos. No sentido geral, vítima é a pessoa que sofre os resultados infelizes dos próprios actos, dos de outrem ou do acaso.
No sentido penal-jurídico-restrito, vítima é a designação do indivíduo que sofre directamente as consequências da violação das leis penais.
No sentido jurídico-penal-amplo, vítima abrange o indivíduo e a sociedade que sofrem directamente as consequências dos crimes.
Deram “o salto” à procura de melhores condições de vida; de um futuro melhor. É censurável? Não.
Alguém os meteu à força dentro da barcaça? Não.
Foram enganados; não sabiam ao que vinham; não sabiam as possíveis consequências dos seus actos? Não.
Vítimas dos seus próprios actos.
Às malvas o politicamente correcto!
Portugal precisa deles; da sua experiência; da sua força de trabalho? Desconheço as suas habilitações, as suas capacidades técnico-profissionais. É discutível. Discutível não é a tomada de posição do Governo. Dar um sinal forte de que Portugal não pactua com este género de situações. Cortar o mal pela raiz para evitar que o Algarve se transforme num porto de acostagem permanente para cayucos. Para ilegais já bastam os que diariamente entram por via terrestre e aérea.
Casos com este não são compatíveis com a poesia de Manuela Costa e José Soeiro. Estamos no campo da realidade, e a realidade é dura. Tão dura que até dói.
Como dizia “o outro”: “com a miséria dos outros posso eu bem!”; o “bom coração” de Soeiro quando diz que repatriá-los significa “devolvê-los à miséria”, resolve, temporariamente, a situação destes imigrantes em concreto. Mas resolve a situação de miséria “lá”, para onde vão ser devolvidos? Ou a solução passa por “venham todos! Fujam à miséria, que nós não vos devolvemos!”?
Bem me queria parecer.
Quando Lisboa – como Paris – já estiver a arder, voltamos a abordar casos como este.
Adenda: “Vão longe os tempos em que altas figuras do PS (como Vera Jardim, que foi ministro da Justiça) iam para o aeroporto de Lisboa impedir a repatriação de estrangeiros ilegais, em nome dos princípios. Agora, é o governo do PS que, às escondidas, os devolve a Marrocos, invocando a lei e os princípios. Tudo muda na vida.” Francisco José Viegas, na versão Correio da Manhã.