"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Ainda sou do tempo das casas de banhos públicas como lugares dados às meditações filosóficas e onde era possível encontrar escrito nas paredes e nas portas máximas tão profundas como o best-seller «neste lugar solitário onde a vaidade se apaga todo o cobarde faz força todo o valente se caga», isto antes do boom das novas tecnologias e dos não sei quantos telemóveis per capita que proporcionaram as mensagens “sms on the wall” género «faço broche» seguida do respectivo número para contacto. Frases a insultar Saramago nunca li, nem coisas do género "John 6:50" como nos estádios de futebol, e o mais próximo de uma revelação divina é encontrar alguém que sai da casa de banho com um sorriso de orelha-a-orelha: “estava mesmo mal. Parece que renasci. Ressuscitei!”. Talvez seja isso.
É só a mim que me faz confusão ouvir a Bella Ciao como banda sonora ao anúncio do IKEA?
E a seguir? Os “Índios da Meia-Praia” do Zeca num anúncio do Mestre Maco (“cada um com seu tijolo…”)? O “Liberdade” do Sérgio Godinho num anúncio da Moviflor (a paz, o pão, habitação…)?
Esta é a frase chave na entrevista dada à P2 do Público por aquele que durante 9 anos foi o responsável máximo pelo design do grupo IKEA, Lars Engman.
“O que se faz aqui é muito bom. Mas acho que podemos fazer muito melhor” diz o sueco, agora envolvido num projecto com a Câmara de Paços de Ferreira para a criação de um Centro Avançado de Design Mobiliário na região.
Comprar um móvel:
Aqui há uma dezena de anos necessitei de comprar umas coisas lá para casa. Uns móveis, uns sofás; coisa pouca. As alternativas em relação à qualidade / preço eram confrangedoras. Ou tudo exageradamente caro (aquela coisa da qualidade paga-se), ou o que era barato era para esquecer. Não havia meio-termo. Aliás havia e chamava-se Moviflor. Pior a emenda que o soneto. Vai daí uns amigos, “porque é que não vais a Paços de Ferreira?”, “Dá para a gasolina, para o almoço, e ainda te vêm pôr os móveis na sala!”. E eu fui.
Paços de Ferreira:
Paços de Ferreira era (é?) um sítio estranho. Um emaranhado de casas, com lojas de venda de móveis ao nível do rés-do-chão. Uma Babel de lojas de móveis. Perdi – literalmente – um dia inteirinho, num entrar e sair de casas e lojas, na procura “daquele” móvel e “daquele” sofá. Infrutiferamente. Os materiais são de qualidade, os acabamentos excelentes, mas o resto, o mais importante, o design, era para esquecer. Desengane-se quem vá pensar encontrar um móvel, sei lá, tipo Wallpaper* em Paços de Ferreira.
O empresário português:
Recordo-me de na altura, em conversas informais com os donos dos estabelecimentos, a grande maioria também fabricantes, perguntar como é que eram escolhidos os modelos, como funcionava a produção, se trabalhavam em parceria com algum centro de formação profissional da região, se desenvolviam parcerias com designers portugueses, se faziam estudos de mercado. Eram demasiados ses, para a resposta recebida. Invariavelmente sempre a mesma, qualquer que fosse a casa: “Não. Vamos às feiras lá fora, copiamos umas ideias e depois produzimos aqui. Às vezes pega outras vezes não. Há modelos que têm mais saída que outros.” O empresário português…
O poder político / autárquico:
Escrevi aqui, por alturas da celebração do contrato entre o Estado português e o gigante IKEA, que, e ao contrário do que muito boa gente pensava, isso significava miséria. E expliquei porquê. Até ver, mantenho o que disse, porque apesar da louvável iniciativa da Câmara de Paços, que finalmente percebeu (?) o que realmente importa, e apesar do entusiasmo empenhado de Lars Engman, Paços de Ferreira não é um IKEA, não é uma entidade una; são centenas de produtores de móveis, cada um per si. O primeiro passo a dar em Paços, e o crucial, vai ser unir toda aquela gente pelo mesmo objectivo. Oxalá me engane...
A outra ideia base subjacente à entrevista resume-se assim: «Numa viagem à Suécia, Rui Coutinho, chefe de gabinete do presidente da câmara, arranjou maneira de “ter dez minutinhos para falar” (negrito meu) com Lars (…)». O poder político / autárquico…
Acabo de ver no telejornal, o ministro da Economia anunciar com pompa e circunstância, a concretização da assinatura de um acordo com a IKEA, para um investimento de não sei quantos milhões em Paços de Ferreira, mais criação de não sei quantos postos de trabalho, directos e indirectos, e o coiso e tal.
Trabalho temporário é o que é!
Quando daqui por alguns anos a IKEA se mudar para outras paragens, à procura de mão-de-obra mais barata e melhores incentivos fiscais, quais são as mais-valias que ficam? Eu digo-vos:
Uma – ou mais – alterações ao PDM.
Caos urbanístico e paisagístico.
Homens e mulheres no desemprego – muitos.
Casais entretanto casados, com prestações da casa, do carro e o diabo a sete para pagar.
Filhos nascidos desses casamentos, em idade escolar, a viverem em famílias psicologicamente destruídas pela força as circunstâncias.
São as mais-valias deixadas pelo investimento das multinacionais.
Vale a pena apostar e congratularmo-nos por este tipo de investimento?