"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Portanto, alguém levar um ordenado decente para casa no final do mês obriga estar 14 horas à disposição da entidade empregadora, pública ou privada. Das 6 às 20 horas, sendo que para entrar às seis tem de se levantar da cama pelo menos uma hora antes para se preparar, higiene pessoal, vestir, etc, e ainda mais algum tempo para quem trabalha longe de casa. E depois sair às oito da noite, pelo menos mais uma hora para entrar na porta da rua às 21 horas, até já acabou o telejornal. E depois faz o quê? Janta e vai para a cama porque está todo partido e no dia seguinte tem de repetir a rotina. Nem televisão, nem saída à noite com a mulher ou os amigos, nem ida ao teatro, ao cinema, a um concerto, e se tiver filhos o crescimento e a educação passam-lhe completamente ao lado.
O rico vai de férias porque se pode dar ao luxo, o pobre trabalha as férias para compensar o fraco ordenado, que não dá para luxos e o direito ao descanso e ao lazer é um luxo dos ricos. Não é um aumento da remuneração que se propõe, é trabalhar o descanso. A seguir propõe-se trabalhar um dos dias da folga semanal, que o aumento das horas no banco já vem no pacote e é substancialmente diferente de aumentar o preço da hora a depositar no banco, na conta do empregado no final do mês. E assim se poupam postos de trabalho e encargos com a Segurança Social. Depois, uns mais desgraçados e a passar por dificuldades, trabalham as férias e fazem as horas extra e o patrão, benemérito, pergunta "então os outros fazem e tu não?". E está no seu direito de perguntar e que ninguém veja isto como coacção sobre o trabalhador, honi soit qui mal y pense. Quem é amigo do patrão,do trabalhador, do colaborador, quem é?
O célebre "temos de fazer mais com menos" com que Pedro Passos Coelho nos brindou durante os quase cinco anos de Governo da troika explicado com um desenho.
Um dos segredos para a recuperação económica passava por baixar o preço da hora extraordinária, não porque Governo tivesse um modelo de baixos salários para o país, mas porque estavamos de rastos por causa do "despesismo e da irresponsabilidade socialista" e uma parte, importante, do esforço comum calhava ao suspeito do costume e passava por aumentar a competitividade das empresas a troco de uns dias de salário por ano [o pagode ganha bem e sai cedo, o que é isso?], não para que os patrões e accionistas aumentassem as mais-valias mas porque o dinheiro que cada um, imbuído de espírito patriótico, deixava de receber, depois de entrar na tesouraria das empresas tornava a sair e iria reverter para a economia real e para a criação de emprego e para o crescimento económico a perder de vista.
A ideia [porque há uma ideia] não é acabar pura e simplesmente com o Serviço Nacional de Saúde, a ideia é arranjar maneira de os profissionais de saúde não quererem trabalhar no Serviço Nacional de Saúde de forma a acabar com ele.
No final da legislatura o serviço vai ser tão mau, mas tão tão mau [mas tendencialmente gratuito e inscrito na Constituição], que só os "pobrezinhos" vão fazer uso dele. Depois entram as IPSS e as Misericórdias. E a miséria.
Alguém imagina, por exemplo, uma empresa de transportes públicos cujo horário de trabalho dos motoristas ou maquinistas fosse das 09h00 às 17h30 e que o restante fosse pago como trabalho extraordinário? Ou, também por exemplo, um hospital, uma cimenteira, uma siderurgia, um estaleiro naval, uma central eléctrica, uma… tudo sectores de actividade cuja especificidade exige o laborar em contínuo e que o horário de trabalho seja de modo a preencher as 24 horas do dia, dito de outra forma, que não um horário “de escritório”. Pois imaginem.