"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Mamadou Ba disse uma verdade indesmentível, até pelo próprio falecido e citando o falecido: Marcelino da Mata foi um carniceiro impiedoso, que fazia ponto de honra disso e se gabava em público e em voz alta. Calhou a Marcelino da Mata ser o "herói" mais condecorado de sempre da tropa portuguesa, vírgula pelo Estado Novo, um pormenor. Nem D. Nuno Álvares. O fascismo precisava de alguém da cor dos outros, um branco da "metrópole" não servia, para mostrar aos outros que éramos todos portugueses, gente de bem, contra o terrorismo e o comunismo internacional,. apesar dos ventos de mudança que sopravam de todo o lado. E direita radical, os "donos da democracia", assumir a defesa da honra de um criminoso de guerra coberto por uma bandeira, que falhou o banco do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos apesar das sucessivas violações da Convenção de Genebra, diz mais sobre ela própria que sobre o defunto.
[Spínola na Guiné, na imagem de autor desconhecido]
Principalmente da parte daqueles que foram, ou que tiveram, familiares perseguidos, torturados, mortos, por pensarem de modo diferente ou só por lutarem por coisas tão simples e tão banais como a liberdade de expressão, e que são hoje, para as novas gerações, tão naturais como o respirar.
Principalmente por aqueles, e por aquelas famílias, que tiveram a vida e as famílias desfeitas e destroçadas numa guerra que não era a sua e que não lhes dizia coisíssima nenhuma, para negar aos outros o que reivindicávamos para nós, sermos senhores do nosso destino e do nosso futuro, e provocada por uma descolonização que não foi feita e que nem sequer era equacionada, não fora o malandro do Mário Soares e os bandalhos dos comunistas se terem lembrado de trazer o tema para a agenda, quebrando a unidade da pátria e o sossego instituído.
Principalmente pelo mundo e pela Igreja que estavam contra nós por causa de uma descolonização que não queríamos fazer, e pelos malandros da Academia Militar que iam estudar para os States e que até se atreviam a vir de lá open mind, a ver o mundo com outros olhos de ver, e a ver uma guerra onde, mais cedo ou mais tarde, iam acabar por morrer, por cousa e por causa nenhuma e em contra-mão ao sentido da História. Ingratos e mal-agradecidos a quem lhes deu oportunidade de estudar no estrangeiro.
Principalmente por causa da "grande dimensão metropolitana" e da "grande massa crítica" que não tínhamos, por causa de Salazar e dum Estado Novo fechado sobre si mesmo, e Deus e Pátria e Família e respeitinho é muito bonito e cada macaco no seu galho e cada um nasce para o que é e manda quem pode e obedece quem deve e o homem rural e a mulher na cozinha e a teta na boca da cria, e que nos impediu de fazer a descolonização que Salazar não queria fazer.
Jaime Nogueira Pinto é uma besta com um título académico que tem boa imprensa e muito tempo de antena e que até pode publicar livros, coisa que o Estado Novo que é muito diabolizado e que Salazar que foi um grande homem, nunca permitiu fazer a quem discordava de si, do seu regime, ou que simplesmente pensava de modo diferente.
E já antes tínhamos tido administradores da Sonae a fazer o pino e o flic flac em programas de opinião nas televisões.
Os que lá estiveram querem esquecer, os novos não querem saber – nem sequer se preocupam em, e os que se preocupam olham como quem olha para um passado distante de um país distante, que não é o seu, com um povo distante vítima de uma ditadura fascista e potência colonial. Tão ou mais vitima como os povos distantes dos colonizados países distantes. A nossa assumpção da culpa funciona em moldes completamente diferentes da assumpção da culpa pela Alemanha em relação ao Reich. Não adianta vir mexer na merda com uns pauzinhos 50 anos depois que não cola, o resultado é igual a zero.
Não sei quais são os critérios que levam a que determinada notícia seja manchete de primeira página. Não sei mas posso por enquanto especular desconfiar.
Ninguém vai obrigado para uma guerra, com “desprendimento” e “determinação”. Nem com “coragem”. Ganha depois a coragem que lhe permita sobreviver física e psicologicamente ao “o horror! o horror!”, como nas palavras do Capitão Kurtz em Apocalipse Now! E a Guerra Colonial, ou Guerra de África, como quiserem, foi uma guerra de obrigados e de famílias destroçadas e destruídas. Injusta, cruel e contra o espírito do tempo. E por isso a génese da revolução que lhe havia de pôr cobro.
O que me surpreende na trapalhada António Lobo Antunes não é o ser ou não ser verdade o que escreveu, é haver alguém que consegue ler o que ele escreve.
A imagem que ficou foram as tardes de chuva a preto-e-branco, sempre. A minha mãe na cozinha a passar a ferro eu à mesa a fazer intermináveis cadernos de contas com tabuadas do 7 do 8 e do 9. A rádio, também ela a preto-e-branco, baixinho num programa em que o genérico era o chamamento de um soldado na guarita: “Está aleeeeertaaa?!” e respondia outro “Alerta estáaaaa!”, depois os telefonemas: “Esta música para o meu querido filho que está na Guiné”, outra “Dedico a canção ao meu namorado que está em Angola no Batalhão de Caçadores nº…”, outra ainda “Com saudades da mulher e filhos para o soldado tal em Moçambique na Companhia tal e tal”.
E eu na mesa da cozinha ao lado do ferro de engomar que comandava os movimentos da minha mãe: nove vezes um nove, nove vezes dois dezoito, nove vezes três vinte sete (…) nove vezes sete… nove vezes sete… nove vezes sete… Sai carolo com toda a força da mão livre, a que segurava a gola ou a manga em cima da tábua de engomar, nove vezes sete sessenta e três.
Lembrei-me disto há bocado quando vinha a conduzir e me saiu a Maria José Valério na rifa do auto-rádio:
«Cuidado, rapazes, cuidado muito cuidado; há mulheres que de tudo são capazes, e a fortuna não está sempre ao nosso lado. Não se casem não, rapazes.»