"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
O João, no seu editorial de hoje [ontem] no Expresso indigna-se por os funcionários do Estado não estarem a contribuir para o sacrifício nacional pois não há um único em lay off com corte de salário (que seria pago pelo mesmo Estado). De quem falará ele?
Diz que não é dos 30 569 médicos, nem dos 49 022 enfermeiros. Nem será dos 9 670 técnicos de diagnóstico e terapêutica. Bem como dos 1 962 técnicos superiores de saúde. Também não será dos 51 366 polícias das forças de segurança ou dos 1 548 polícias municipais. Ou dos 2 292 bombeiros.
Se bem percebi também não fala dos 136 150 professores dos vários níveis de ensino básico e secundário que continuam a dar aulas à distância e a preparar o que aí vem. Ou dos 15 241 docentes universitários e 10 470 docentes superior politécnico que continuam com aulas não presenciais.
Mesmo os políticos nacionais, regionais, locais estarão em overdrive como nunca pelo que também não será desses 2 374 que fala ou sequer dos autarcas que na larga maioria não contam para este totobola pois recebem senhas e não salário.
Será que fala dos 157 990 assistentes operacionais/ operário/ auxiliar (aqueles que constituem, no Estado, o grupo com mais infetados) que contém, lá pelo meio, a malta que está nos hospitais, centros de saúde, que nas autarquias continuam a desinfetar ruas e enterrar mortos? Se calhar não.
Talvez sejam os 87 448 assistentes técnico/ administrativos bom, mas também nesses os há que estão em teletrabalho a apoiar os 67 965 técnicos superiores que desenham e acodem a empresas e particulares com todas as medidas de exceção.
Já sei, são os dirigentes, os 11 107 dirigente intermédios e os 1 713 dirigentes superiores. Mas espera, quem define trabalho, organiza o trabalhado à distância, distribui pessoas para outras áreas críticas neste período? Não também não devem ser esses.
Talvez os 5 181 informáticos? Eh pá, também não! Esse andam completamente debaixo de água a tentar que tudo funcione à distância e a trabalhar como nunca. Os 403 diplomatas? Bom, esses anda em roda viva à procura de garantir equipamentos e razoabilidade entre pares.
Serão os magistrados, todos os 3 801? Bom, parece que há muitos procesos ainda em curso e muito trabalho acumulado que implica ler, estudar e despachar. Ná. Também não andam a coçar a micose.
Estão-se-me a acabar os suspeitos. Mas... serão os 3 441 tipos da investigação científica? Os de biomédicas? Os de economia? Quais? Sim haverá alguns que ficaram em casa mas até esses estão de prevenção e podem ser chamados a qualquer momento como determina o Estado de Emergência.
Pois é JVP, provavelmente NUNCA em tempo de paz os mandriões do Estado mandriaram tão pouco. Se calhar NUNCA tantos sentiram o peso e importância de cumprirem e se calhar NUNCA os que eles servem reconheceram tão facilmente quão importante é o seu trabalho para comunidade. Saúde!
Quando há milhares de portugueses com a ameaça do desemprego a pairar sobre a cabeça, com ou sem subsídio; quando há milhares de portugueses em risco de perderem uma parte importante do rendimento do seu trabalho, quer por via do layoff, quer por via da eliminação do subsídio de refeição; quando a falência ameaça milhares de micro, pequenas e médias empresas, provocando um rombo inimaginável na Segurança Social, nas finanças públicas, e metendo a dívida externa outra vez em rota ascendente, o sindicato do emprego para a vida sai a terreiro para dizer esperar que o coronavírus não ameace ou ponha em causa futuros aumentos salariais na Função Pública, um dia depois de terem sido aumentados. Não ter a puta da vergonha na cara é isto.
Os "dois pesos e as duas medidas do Governo", segundo o secretário-geral vitalício da FESAP [a partir do minuto 08:25], com o referencial de 2,7% para o sector privado e o "ofensivo" 0.3% para a Administração Pública, como se estivéssemos todos esquecidos do tempo em que toda a gente, jornalistas, comentadeiros e fazedores de opinião, dizia que como referencial para o sector privado valia o número avançado pelo Governo para a Função Pública, e de todo o sector privado ser "aumentado" entre 0.3% e 1% quando José Sócrates dava 2.9% aos empregados no Estado em vésperas da chegada da troika. É que no privado são todos malucos e vivem no emprego para a vida.
Depois da "Novilíngua", e já na era do economês, as secções partidárias dos departamentos de agit-prop instalados nos jornais ditos "de referência" criaram agora a "Novimatemática", expandindo o universo orwelliano para o infinito e mais além.
Como é que [menos] -1462 + [menos] -1334 é = a [mais] +128?
Uma das frentes de batalha do Governo da direita radical PSD/ CDS - Passos/ Portas nos anos da Troika, aberta e perdida, portugueses contra portugueses, o privado contra o público, dividir para reinar, arrisca agora triunfar nos anos da esquerda geringonça. Ele é as 35 horas de trabalho, ele é a recuperação das carreiras profissionais, ele é a progressões na carreira só porque sim, ele é a recuperação do tempo perdido por quem não viu a fábrica ou a empresa abrir falência, por quem não conheceu o desemprego e a emigração, por quem não teve salários em atraso, ele é merdices que não lembram nem ao diabo, como seja os funcionários públicos terem três horas livres no primeiro dia de aulas dos filhos, ele é o cuzinho lavado com água das malvas, é só já o que falta. Ele é o Governo da maioria parlamentar para a minoria do funcionalismo público, na sua realidade paralela. Entretanto vamos falando de populismos e esperando a inevitabilidade do regresso da direita ao poder e da vassourada definitiva na função pública e do desmantelamento da administração do Estado em favor de interesses privados mais ou menos obscuros. Life goes on.
Nos idos da direita radical PSD/ CDS aparecia sempre um porta-voz do ministério da tutela ou da empresa pública em questão a contrapor os números de adesão à greve fornecidos pelos sindicatos. Agora isso deixou de acontecer. Foi 80, 100, 120%? Pois que seja.
Há que tirar o chapéu a António Costa quando saca da cartola o argumento de que "é mais importante contratar mais funcionários públicos do que aumentar os salários". O Bloco de Esquerda, com reduzida implantação na Função Pública e percebendo a armadilha, embatucou e fingiu que não tinha ouvido nada. O PCP, Jerónimo de Sousa, que ainda a semana passada disse no Parlamento que "há já muitos anos que por aqui ando", engoliu o isco e quando se deu conta da esparrela desviou a conversa para "a dívida pública impagável e o dinheiro que não há para nada mas há para os bancos", argumento justo e bonito, de resto, mas que não tem nada a ver para o caso porque, como disse e bem, a opção é política e o dinheiro vai ser sempre gasto, seja em aumentos seja em contratações, deixando o secretário-geral dos comunistas de fora os que já estão de fora, os desempregados, e encostando-se onde António Costa o queria encostado, ao partido da Função Pública, com toda a carga que isso tem no resto do país, nos outros, nos que não trabalham para o Estado.
Vem então os 'pontas-de-lança' dos partidos nos sindicatos, um para fazer prova de vida e outro para interpretar o papel que lhe foi destinado representar, invocar "os baixos salários" e "o congelamento de carreiras e de aumentos salariais". Mais dois encostados nas cordas ao lado de Jerónimo de Sousa, com as progressões nas carreiras e aumentos salariais no sector privado que não há só porque sim e porque a velhice é um posto como na tropa macaca, e com a falência do Estado, a manter o emprego a todos os seus funcionários, paga com a falência, o desemprego, a emigração, a miséria de milhares no sector privado e com o congelamento salarial e precariedade para os que ficaram.
Depois, se houver uma crise como a do subprime, ou outra, uma guerra, com o imbecil que está instalado na Casa Branca nunca se sabe, se o preço do petróleo vier por aí acima, se o próximo ocupante do Banco Central Europeu for um alemão fundamentalista, e isto der para o torto, dá de certeza, e apanharmos com o terceiro resgate numa década, o ministro das Finanças vai explicar aos portugueses, aqueles que não trabalhadores da Administração Pública, do sector privado, que não são aumentados há quase uma década, nalguns casos até há mais tempo, porque é que não havendo dinheiro para nada, nem para a saúde, nem para a educação, nem para as polícias e os militares, nem para a justiça, andou a distribuir dinheiro a rodos ao invés de manter o défice perto do zero por forma a reduzir os juros da dívida e permitir o investimento público.
"Progressões na carreira congeladas". É-se promovido não por mérito, não por uma avaliação de desempenho, é-se promovido porque sim, porque se está há xis tempo naquele posto e há que passar ao superior, já é tempo de ganhar mais ordenado, seja o melhor do mundo ou o maior calaceiro da repartição, câmara, ministério, junta de freguesia ou hospital.
O aspecto mais curioso, chamemos-lhe assim, do argumentário justificativo da tolerância de ponto dada aos funcionários públicos aquando da visita de Francisco, Papa, a Fátima, ou à cova Deiria, como dizem as televisões, argumentário comum ao Governo, aos partidos da 'Geringonça' e à direita radical beata, uma verdadeira 'união nacional', prende-se com o facto de "muitos portugueses manifestarem interesse em se deslocarem ao santuário", por coincidência, e só por coincidência, todos funcionários públicos, que no Estado laico o sector privado não tem tempo para terços nem se governa com Pais-Nossos e Avé-Marias.