"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Ontem José Sócrates em mais uma “Festa da Democracia” foi copiosamente vaiado no Estádio da Luz durante a gala das 7 Maravilhas do Mundo. À atenção do senhor Comissário Político do PS em Lisboa, perdão, do senhor Governador Civil, por mais esta manifestação ilegal. As câmaras de vigilância do estádio estavam ligadas? Vai dar muito trabalhinho identificar todos aqueles milhares que assobiaram. Não vão ser favas contadas como em Braga onde eram só meia dúzia de manifestantes, perdão, de “foliões”…
Hoje para a inauguração da Ponte da Lezíria estava marcada mais uma manifestação, perdão, mais uma “Festa da Democracia”. Não se realizou devido à polícia ter ordens para os manter bem afastados de Sua Eminência, O Querido Líder. Sorte a deles – dos “foliões” -; não vão ter problemas com o Governador Civil.
Post-Scriptum: Uma pergunta para a senhora secretária de Estado Carmen Pignatelli: Dentro do Estádio da Luz pode-se "dizer mal" do Governo?
Na apresentação do relatório anual do Observatório Português dos Sistemas de Saúde,Carmen Pignatelli, secretária de Estado da Saúde arrancou as gargalhadas da assistência ao dizer: “Vivemos num país em que as pessoas são livres de dizer aquilo que pensam… desde que seja nos locais apropriados. Eu sou secretária de Estado, aqui nunca poderia dizer mal do Governo. Aqui. Mas posso dizer na minha casa, na esquina, no café. Tem é de haver alguma sensibilidade social…”
Esta interpretação da secretária de Estado não deixa de ser um salto significativamente qualitativo. Recuando alguns anos na nossa história recente, na Alemanha de Hitler, e recorrendo às palavras da senhora secretária de Estado, nem em casa se podia “dizer mal do Governo”, porque à nossa mesa de refeições estavam sentados os nossos filhos que pertenciam à Juventude Hitleriana e corríamos o risco de por eles sermos denunciados à Gestapo. O que aconteceu com mais frequência que se possa imaginar.
Também é um salto qualitativo em relação ao passado recente, no Estado Novo de Salazar. Não se podia dizer mal do Governo “na esquina, no café”, mas em casa já havia essa possibilidade, desde que fosse no círculo marido-mulher-filhos. Até porque a propaganda do Estado Novo sobre a juventude, via Mocidade Portuguesa, nunca teve as mesmas dimensões, quer na forma quer no conteúdo, que a da Juventude Hitleriana. E Salazar que de burro tinha pouco e era homem avisado sabia que nunca obteria os mesmos resultados em Portugal; somos um país do Sul da Europa, e aqui os laços familiares ainda valem mais que as devoções políticas.
Mas também podemos interpretar as palavras de Carmen Pignatelli como um retrocesso. Passo a citar Santana Castilho em crónica intitulada Mccarthismo à Portuguesa no Público de ontem: «José Augusto Seabra, que era pequeno de estatura física, foi ministro da educação pelo PSD. Decidiu um dia reservar um dos ascensores da 5 de Outubro ao seu exclusivo serviço. Numa das primeiras utilizações a solo foi surpreendido por um insólito cartaz afixado na parede frontal do dito: “Cuidado, não pisem o ministro.” E o pavimento da cabina mostrou-lhe que o contestatário havia tido a temeridade de defecar ali mesmo. O autor foi identificado por funcionário zeloso. Mas Seabra recusou ouvir a delação e limitou-se a limpar os estragos e devolver o sobe-e-desce ao uso colectivo.
“Beleza não é saúde” foi metáfora maliciosa que decorou serviços hospitalares quando Leonor Beleza foi ministra da Saúde. Clínico amigo, responsável por um deles, homem prudente e cordato, foi, ele próprio, retirar tais dísticos do corredor onde a ministra ia passar. Mas o contestatário foi mais eficaz. E quando uma hora volvida o meu amigo voltou ao sítio, acompanhando Leonor Beleza na oficialíssima visita, já para lá tinham voltado as frases maliciosas. O médico permaneceu no cargo até que quis. E a ministra foi simplesmente digna quando passou no corredor.»
Era Cavaco Silva Primeiro-Ministro. O tal, aquele que nunca se enganava e que raramente tinha dúvidas, o do autoritarismo, como ficou conhecido.
A senhora secretária de Estado Carmen Pignatelli finge não perceber o essencial da questão. Neste preciso momento há um ponto comumentre os regimes de Hitler, Salazar e o Governo Sócrates: É o incentivo à delação e à bufaria, e, resta apurar, se a recompensa vem a caminho… E isto, senhora secretária de Estado, não é compatível com o conceito de Democracia.
É por isso que estas derivas totalitárias com origem nos Comissários Políticos que um pouco por todo o lado ocupam lugares-chave na Administração Pública, devem ser combatidas e cortadas cerce logo à nascença. Para que nos possamos continuar a rir, e em público, das palavras dos governantes.
Há muitos, mas mesmo muitos anos, que não participo em acções de protesto, manifestações, comícios, ou outras intervenções similares; a última de que me recordo foi a propósito de Timor. Agora que por eufemismo se denominam “Festas da Democracia” estou a ponderar participar numas quantas. É só uma questão de oportunidade até José Sócrates passar por Setúbal. Não que pense que isso leve a algum lado ou vá resolver alguma coisa. Não. Mas com a secreta esperança que o Comissário Político do PS em Setúbal, perdão, o Governador Civil de Setúbal siga o exemplo do seu congénere de Braga e mande instaurar processos aos manifestantes, perdão, aos foliões da “Festa”.
Carregar no curriculum, via cadastro, detenções e possíveis condenações por acções de protesto contra a deriva autoritária de um Governo, suportado por um partido que se reclama do socialismo, é honroso; quase como que uma medalha de mérito. De fazer inveja a muito bom militante da União dos Resistentes AntifascistasPortugueses,(URAP).
Adenda: 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais! (a plenos pulmões).
No primeiro dia da presidência portuguesa da União Europeia, manifestantes em protesto acamparam à porta da festa. José Sócrates que se ia a escapulir por uma lateral, foi caçado pelos jornalistas que lhe perguntaram como encarava os protestos e os apupos. Com um enorme sorriso respondeu que sim, que está tudo bem, que vivemos numa sociedade aberta, e o coiso e tal; "É a festa da democracia". E lá foi à vidinha.
Depois de mais uma das muitas festas da democracia que se vão tornando regulares por esse país dentro, calhou a vez aos foliões de Braga de começarem a apanhar (com) as canas dos foguetes.