"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Manuel, Dom e Clemente, diz que um paneleiro não pode ser padre. Não é isto que Manuel, Dom e Clemente, diz mas é isto que pensa quando diz que "é completamente desaconselhável aceitar homossexuais no sacerdócio" porque o problema para o sacerdócio não é o impulso sexual, inato às espécies, mas a orientação sexual da espécie e, como vivemos num país livre numa democracia liberal, todo e qualquer matarruano pode dizer o que muito bem lhe aprouver e pode ser padre também e ter tempo de antena e tudo.
Manuel, Dom e Clemente, diz que um padre pai pode continuar a ser pai e padre desde que não coise e tal mais nenhuma vez com a fêmea mãe da criança, que o que está feito está feito e o pai pode continuar a ser padre e o padre pode continuar a ser pai e que a mãe serve para abrir as pernas e satisfazer e depois parir e depois criar e educar, em família monoparental, censurável e condenável aos olhos da igreja de Manuel, Dom e Clemente, excepto se o pai for padre ou se o padre for o pai.
Passar a vida, anos, 42 mais precisamente, com a boca cheia de família e o dedo em riste apontado aos outros, aos que não respeitam o "núcleo central da sociedade", além de Deus e da autoridade.
Nos idos em que as mulheres não iam à escola e os homens, os que iam, iam só até à 3.º classe, televisão nem vê-la, rádio só a pilhas e para ouvir o relato, sem idas ao teatro ou ao cinema, trabalhar de sol a sol, 7 dias por semana, 365 dias por ano, sem salário mínimo, nem contratação colectiva, nem sindicatos, nem Serviço Nacional de Saúde nem Segurança Social, os casais tinham 6, 8, 10 filhos, quer dizer, as mulheres pariam 6, 8, 10 filhos, e ficavam em casa a tratar da roupa e do jantar, quando havia, e os putos, com o ranho pelo nariz, descalços e com roupa remendada, enquanto não herdavam a roupa remendada dos mais velhos, que iam à escola até à 3.ª classe, os que iam, e voltavam rapidamente, e em força, para trabalhar ao lado do pai para compor o orçamento familiar, até casarem com mulheres que pariam 6, 8, 10, filhos e ficavam em casa, sem saber ler nem escrever, a tratar da roupa e do jantar, quando havia. Ou fugir para a emigração para fugir a um futuro sem futuro. Qualquer semelhança é pura coincidência, como nos filmes amaricanos.
Daí o aumento do desemprego, quem não tem dinheiro não tem vícios, e não precisa de cultura nem de lazer para nada enquanto desempenha o papel que lhe atribuíram de força de pressão sobre os que ainda vão mantendo o trabalhinho. Trabalhar com fé é dever sagrado, como na canção.
Daí a baixa de salários no sector público, e no sector privado por via das alterações ao Código de Trabalho em favor da rigidez patronal, e quem ganha pouco tem de se governar com pouco e quem não tem dinheiro não tem vícios.
Daí o aumento do IMI a onerar ainda mais o orçamento familiar, reduzido pelos sucessivos cortes e taxas e impostos, e a desincentivar a compra de casa própria porque o sentimento de propriedade é pernicioso à sociedade que se quer subserviente e respeitadora das hierarquias, numa sociedade liberal governada por uma direita defensora da… propriedade privada.
Daí a exclusão do subsídio de férias e de Natal para o cálculo dos apoios à maternidade e a atribuição do abono de família de modo a que é preferível não receber abono algum porque é sinal de que se não desceu mais um andar no “elevador social”.
Daí as propostas da jota que é democrata e cristã para que se baixe a escolaridade obrigatória.
Ele tem um plano e nós bem que o compreendemos e nem precisamos de esperar por nenhum Joaquim da Universidade Católica, basta perguntar aos nossos pais ou aos nossos avós das recordações que guardam do plano para o aumento da natalidade.
Nos filmes do faroeste made in Hollywood também há a figura do pregador que anda de cidade em cidade, vestido de preto e com O Livro na mão, contra o vício e a depravação que minam a sociedade, com o temor do desmoronamento da família na ponta da língua, ignorando o sofrimento dos mineiros, a exploração dos trabalhadores do caminho-de-ferro, ou a especulação de que são vitimas os criadores de gado. Acaba sempre com um tiro no meio da testa ou no saloon a beber shots de bourbon nos braços de uma prostituta chubby.
[Na imagem John Wayne na pele de Ringo e Claire Trevor como Dallas em "Stagecoach" de John Ford, 1939. Não tinha pregador mas tinha "muita família"]
A Direita, sempre tão ciosa dos valores e da família, da família “verdadeira”, virou a cara para o lado e desatou a apontar os dedos todos da mão ao Estado. Ao Estado socialista, dizem. Ora deixa-me cá fazer contas e ver quem é que eram os socialistas que estavam na administração do Estado quando a penhora foi decidida…
O Estado que deu pela dívida por liquidar foi o mesmo Estado que não deu pelas pensões por levantar. Durante 9 anos. Nada de novo, é a função do Estado-contabilista que parimos dar pelo Deve e ignorar o Haver. O Estado é uma família moderna, desgraçado de quem tem uma. E a senhora tinha.
Ainda sou do tempo em que parava uma rua inteira para acudir a alguém que caía na calçada. Mas nesse tempo fugia-se mais aos impostos, dizem.
Em quase gritaria, à porta da escola uma MILF com “produção” Zara, a fingir que falava para o rebento-fêmea mas com a intenção de atingir a rua toda: “Se for uma menina dás dois pontapés nas canelas se for um rapaz dás um pontapé na pilinha”.
Menina que não é rapariga e rapaz que nunca há-de ser menino e de pequenino é que torcemos o destino. Dos nossos e dos “dos outros”.