"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
"Uma afronta ao senhor Presidente da República", por qualquer coisa que o Governo ou o Parlamento façam, é o argumento último da direita, incluindo aquela que via o "senhor Presidente da República" como um cata-vento, como se o "senhor Presidente da República" fosse uma vaca sagrada ou dono da verdade absoluta. E o desconhecimento em absoluto dos poderes e competências de cada um dos intervenientes políticos pela grande maioria do cidadão anónimo, que logo concorda com quem aponta "a afronta ao senhor Presidente da República", explica a impunidade com que o "senhor Presidente da República continua no bullying ao Governo e no condicionamento da actividade governativa e da acção do Parlamento, o "senhor Presidente da República" que devia dar o exemplo pela pedagogia.
A Direcção-Geral de Saúde decidiu passar ao papel aquilo que acontece desde sempre nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, os enfermeiros asseguram os partos de baixo risco, quando neste momento até alguns de alto risco já asseguram, e logo veio a Ordem dos Médicos, a vaca sagrada dona da verdade absoluta, requerer a revogação imediata da norma, preocupada que está com um processo que garanta melhor qualidade dos cuidados de saúde às mães e às crianças, assegurado pelos médicos que não há, pelo aumento de vagas no cursos de Medicina que a Ordem recusa aceitar, com o argumento que não há falta de médicos em Portugal, os que importamos dos PALOP e dos países de leste, mais os que não entraram aqui e foram fazer o curso a Badajoz e depois regressam com o canudo prontos a exercer, são mais que suficientes. Acima da Ordem só Deus, para quem Nele acredita.
Um país maioritariamente católico em eleições livres e democráticas elege deputados, alguns católicos, que marcaram presença em debates e votações desde que o tema veio para a agenda. A Igreja Católica que não foi tida nem achada num debate do Estado laico não se coibiu de fazer ruído e passar desinformação. Isto não é um tema religioso, é um tema político. Marcelo, o inimigo da Constituição que jurou defender e fazer cumprir.
«Presidente da República analisou a evolução da influência católica em Portugal nos últimos 50 anos e concluiu que menor relevância leva a que temas como o da eutanásia tornem "mais espinhosas magistraturas chamadas a arbitrar".»
Depois de alegremente terem votado ao lado do Chega contra a morte medicamente assistida, e de alegremente fazerem gala disso com os RT's às notícias que dão conta que "eutanásia aprovada na especialidade com votos contra de Chega e PCP", alegremente continuam nas redes com a mobilização total de trolls para xingar o partido que mais trolls mobiliza nas redes, os ilusionistas liberais, num ponto em que até têm razão, a obrigatoriedade de um bidé para o licenciamento de uma habitação.Via rápida para a total irrelevância.
Corria o ano de 1998 quando o católico Marcelo, líder do PSD, e o beato Guterres, primeiro-ministro, cozinharam um referendo que havia de dar em Junho um "Não" à despenalização da interrupção voluntária da gravidez; seis meses passados, em Novembro, o mesmo Marcelo havia de impor ao mesmo Guterres outro referendo, do qual resultaria outro "Não", desta feita à regionalização. Uns truques e prestidigitação e ninguém se compromete, foi o povo que decidiu está decidido. Em 2022 é o prestidigitador Presidente da República e o homem que não tem passado, "o meu passado chama-se "Passos", líder do PSD, tira da cartola um referendo à eutanásia, como forma de não se comprometer, ir ao terreno do Chaga, a agremiação do ex camarada de partido, depois de dois vetos e três aprovações no Parlamento. Inspirou- se em Marcelo, o homem sem passado que consegue discorrer longamente sobre coisa nenhuma sem dizer nada de substancial, ou foi por Marcelo inspirado? Seja como for há aquela cantiga dos GNR, "Sinto-te uma fotocópia prefiro o original, Edição revista e aumentada cordão umbilical".
Agora que ele começa a sair a espaços cada vez mais curtos do curto silêncio a que se impôs, e até aparece a pedir "sobressaltos cívicos", preocupado que está em "como a esquerda entende legislar a questão da eutanásia":
Chico Francisco, líder do CDS que se orgulha de ser o único partido historicamente contra a "Constituição socialista", invoca a Constituição como argumento contra a morte medicamente assistida.
"Não podemos permitir que alguns deputados [homens e mulheres] queiram decidir por nós" mas podemos, e devemos, permitir que alguns homens, iluminados e com acesso em exclusivo à palavra de Deus e à sua interpretação, nos digam o que é certo ou errado, que aceitemos a sua ideia da ideia que Deus tem para connosco e, melhor ainda, aquilo que decidam o que podemos ou não podemos permitir. É a diferença entre democracia representativa e ditadura de inspiração divina. E quem não percebe isto não percebe nada.
Já que o critério parece ser a "imposição de critérios", o que é que pesa mais: 150 bispos eleitos pelo método do centralismo democrático - o Papa nomeia os bispos que elegem o Papa, ou 150 deputados eleitos pelos cidadãos em eleições livres e democráticas?
Por muito que gostassem isto não é a rábula do "o que é que pesa mais: um quilo de chumbo ou um quilo de algodão?" sendo que, contra todas as leis da física, um dos quilos já pesou mais.
A primeira página do jornal i, que tanto pode ser exibida com orgulho pelos defensores do "Não" como usada como "dedo acusatório" pelos proponentes e apoiantes do "Sim".