"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Entras numa loja de marca numa grande superfície. Griffe, classe média alta/ alta. És atendido por um cigano. Sem nada que o indicie, da cor da pele, à maneira de falar, passando pela barba e corte de cabelo. Extremamente bem parecido e bem arranjado, tipo catwalk Moda Lisboa. Só sabes que é cigano porque o conheces de vista, a ele e à família, aos membros mais velhos, mais tradicionais. Perguntas por um fato, deixa-me cá escrever paletó por causa dos ignorantes do Acordo Ortográfico, medida acima da que está no expositor. Não há. Perguntas se há noutra qualquer loja da marca. Faz check no computador e vira o monitor para ti, "como pode ver não é má vontade, não há mesmo". Voltas com outro fato, outro padrão, a mesma pergunta, a mesma resposta, o mesmo virar de monitor. Nunca ninguém te tinha feito isto em tempo algum em loja alguma em alguma marca. Não há, não há, ponto final, não é preciso o vendedor fazer prova de fé. Sente-se visto como cigano, o que engana as pessoas na feira, por aqueles que não o vêem como cigano e nem sequer sabem que ele o é. Tem de se justificar. Tiraste o cigano da feira mas não tiraste a feira do cigano.
Em mais um feriado Vera Lagoa a novidade foi Marcelo não ter dito qualquer coisa. Deixou escrito na página da Presidência. Por acaso é sobre ciganos. O que vindo de Marcelo todas as interpretações são legítimas.
O Ventas do Chaga pode montar uma campanha de ódio contra uma minoria, toda ela assente na mentira "os ciganos vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado", afirmação desmentida pelo estudo do Alto Comissariado para as Migrações, mas o Ventas não pode ser desmascarado e chamado de mentiroso porque se enquadra na categoria de "ataque a opositor político" na "gestão do ensino público pelo Governo".
"Como é que podemos confiar na gestão do ensino pelo Governo?" pergunta o sonso Ventas a propósito de uma aula de Filosofia que levanta a questão "como é que podemos confiar na palavra de um populista que recorre sistematicamente à mentira e à desinformação para ganhar dividendos nas urnas?"
Porque é que ser de um concelho tradicionalmente comunista é vacina contra a ciganofobia, reflectida no score eleitoral do Ventas, nos concelhos da raia alentejana e nos urbanos da margem sul do Tejo onde essa comunidade tem forte implantação?
- Que violência chama violência e quem quem passa a vida a insultar e agredir verbalmente os outros só pode esperar a retribuição, é uma questão de tempo. E depois lá virá o Calimero com o dia negro e o atentado à democracia e a liberdade e o coise e tal quando dos maiores atentados que se podem fazer à democracia e ao Estado de direito democrático são as agressões a jornalistas e a coacção à imprensa, mas isso não é merecedor de condenação ou reparo.
- Que Joseph Goebbels inventou tudo o que havia para inventar em matéria de propaganda e agit-prop e que agora é só ir buscar e remasterizar porque há sempre uns pobres de espírito dispostos a tudo papar.
E foi um processo em crescendo. Começou com a insinuação de fraude eleitoral. Passou para a fraude dos ciganos inventados. Uma perseguição automóvel do Bloco de Esquerda. Uma incursão em território religioso que correu mal e passou ao lado da generalidade da comunicação social. Até uma tentativa de apedrejamento por ciganos verdadeiros com cartazes da candidata que o vai remeter para a terceira posição nas Presidenciais numa luta ombro-a-ombro com o candidato comunista. Tipo a facada do Bolsonaro, mas como os ciganos modernos não usam facas os ciganos inventados estavam lá atrás preparados para que tudo corresse pelo melhor. E o melhor tinha de ser hoje, o penúltimo dia de campanha, porque se fosse amanhã, o último dia, não servia para nada porque não era notícia em lado nenhum por causa do "dia de reflexão".
Percebem?
[A montagem de Bernie Sandres na recepção cigana ao Ventas é do Nuno Alexandre]
Um deputado eleito por um partido com meses de vida, numa campanha eleitoral milionária, com o dinheiro saído ninguém sabe de onde, e sem que ninguém se tenha preocupado em investigar a sua origem, num partido pejado de nazis, skins e fascistas, antes envergonhados e agora às claras, transfugados de grupelhos nazis, legalizado com assinaturas falsificadas, irregulares e duplicadas, perante o encolher de ombros do Tribunal Constitucional, é multado por discriminar ciganos, no seguimento insulta uma deputada eleita, e o assunto nas "redes sociais", ou o caralho que lhe queiram chamar, é o valor da multa. E depois, seus palermas, queixam-se exactamente do quê?
O Der Stürmer do tugão, naquele jeito único que os portugueses têm para aportuguesar todas as palavras estrangeiras, O Estrume, é raro o dia que não faça primeira página com o Ventas do Chaga. Dantes eram os judeus, hoje são os ciganos, amanhã é qualquer um de nós, se para o caso der jeito.
"I'm having them prepare a dossier on the Roma question in Italy at the ministry because after (former Minister Roberto) Maroni, nothing has been done and it's chaos,".
"(There will be) reconnaissance on the Roma people in Italy to see who, how, how many, re-doing what was called the census. "We'll have a register". The minister said that Roma people who do not have the legal right to be in Italy will be deported via an agreement between States, adding that "unfortunately, you have to keep the Italian Roma at home"
"Quem prevarica evidentemente tem que ser punido, seja cigano, seja muçulmano, seja um português qualquer normal. O Conselheiro de Estado Luís Marques Mendes no telejornal da SIC pedagogicamente a ensinar ao povo ignaro que em Portugal há portugueses normais e há ciganos e muçulmanos e que um cigano e um muçulmano não podem ser portugueses e que um cigano e um muçulmano não são cidadãos normais
"Outros feirantes, portugueses de gema". Separava assim, na Quadratura do Círculo na SIC Notícias, o Conselheiro de Estado António Lobo Xavier os ciganos feirantes dos outros feirantes, mais claros e que não cheiram a fumo, deduz-se. 500 anos de gerações nascidas em território nacional sem direito a nacionalidade. Nem portugueses de clara nem portugueses de gema. De gema, como o Conselheiro António Lobo Xavier, daquela categoria que nos 80s se ria muito com a anedota da mulher do Samora Machel apresentada ao Presidente português em visita de Estado.