"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Foi o povo a figura central nas comemorações do centenário da República. Quer pela retórica da praxe debitada de cima do palanque no modo “busto do Napoleão” em formato busto da República, quer pelo seu alheamento da efeméride, manifestado em forma de ausência das comemorações da dita cuja República na Praça do Município em Lisboa. Alheamento aliás correspondido pela elite dominante e pela elite mal pensante. Toda a gente deu pela ausência de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, ninguém deu pela ausência do Povo, ou sentiu sequer a sua falta. Sintomático. Venham mais 100 anos.
«(…) a cidade sadina foi a primeira do país a aclamar a República, ainda no dia 4 de Outubro de 1910. (…)
(…) na tarde de 4 de Outubro de 1910 “chegam a Setúbal os mais desencontrados boatos sobre o que se passava em Lisboa”, sendo que, mais tarde, as comunicações com a capital “são cortadas”.
O “grande grau de indefinição” levou a que, à porta do Centro Republicano, na rua das Esteiras, se começasse a juntar uma multidão, à qual se juntaram os ocupantes da sala do Centro que “saíram para as ruas da cidade dando vivas à revolução e à república”
Todo este aglomerado popular encaminha-se para a esquadra da polícia que funcionava no edifício dos Paços do Concelho. “O chefe das forças policiais é intimado a hastear a bandeira republicana, o que recusa. De dentro da esquadra são disparados tiros de revólver, gota de água para o ajuste de contas que a população setubalense há muito ansiava por saldar com a polícia monárquica” (...). Revoltados, os populares invadem e incendeiam a esquadra e “em pouco tempo esta espécie de Bastilha setubalense deixava de existir”.»
Ficámos todos a saber que no próximo dia 5 de Outubro de 1910 vamos comemorar 59 anos de República “de facto” e 100 anos “de jure”, porque pelo meio houve um hiato de 41 anos que não conta para nada, não foi Monarquia nem foi República - apesar de formalmente ter havido a figura do Presidente - e até convém nem sequer falar disso e muito menos encenações históricas. Como o país esteve 41 anos “suspenso” – “de jure” – suspenda-se também a história, em upgrade Bloco de Esquerda da suspensão da Democracia.
Não há meio de aprenderem que as ideias se combatem com ideias e não com proibições.
Foi muito educativo – era para ter escrito interessante – ouvir falar em “ideais republicanos” e em “novo espírito de cidadania” e em participação cívica e em transparência na cousa pública; diria mesmo: foi até comovente.
E depois seguiu-se o almoço comemorativo da praxe, vedado às imagens da comunicação social e aos comentários dos jornalistas.
O que menos interessa, e para o caso, é o conteúdo - ou a ausência dele - do discurso de José Sócrates. O que importa reter é que o primeiro-ministro de um Governo do Partido Socialista, num Estado laico e republicano e à entrada do ano do centenário da implantação da República faz uma comunicação ao país no dia de Natal.