"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
Cresci num bairro de pescadores em Setúbal onde a miséria era mais que muita, eles "ao mar", elas nas fábricas de conservas, ou "a dias", como então se dizia, os filhos na escola até à 3.ª/ 4.ª Classe e ala para o mar ajudar o pai na traineira, ou o orçamento familiar, que se faz tarde, com muito boa sorte aprender um ofício que lhes permitisse fugir às redes e a andar descalço ou de chinelos de enfiar no dedo antes de haver havaianas. Quando a vida melhorava para alguns, o "elevador social" como agora se usa, o sinal exterior de riqueza era um carro, de preferência 'amaricano', os europeus não davam nas vistas e os japoneses tinham a chapa que era uma merda, um toque e ficava tudo amassado, bate-chapas e tinta Robiallac, quem era pobre, um degrau acima de miserável, andava de pasteleira. Lembrei-me disto por ver a reportagem no El Mundo sobre Salt e Gerona, "Ciudad pobre, ciudad rica", ilustrada por uma foto onde o símbolo da riqueza é ir de bike com o filho à pendura. As voltas que o filho da puta do mundo dá.
Até há duas dezenas de anos os putos aprendiam a andar de bicicleta com os pais nos parques e jardins, antes disso aprendiam na rua, a brincar uns com os outros. Agora que o Governo decidiu apostar na vertente ciclismo no desporto escolar e que são anunciados três milhões de euros em bicicletas para distribuir pelas escolas, para que os alunos do 2.º ciclo aprendam a andar já este ano, a discussão é sobre o dinheiro que o Governo vai "deitar à rua", "esbanjar", nos "amigos" que vão ganhar dinheiro, e o caralho, e não como nos demitimos todos, como é que chegámos até aqui. Continuem com discussões da treta que vão bem encaminhados.
Conseguir falir uma marca cinquentenária quando o mercado se encontra em expansão acelerada à escala global e com a carteira de encomendas repleta. CLAP! CLAP! CLAP!
A fórmula mágica para o crescimento supersónico de dois dígitos ao ano, para o infinito e mais além: baixos salários, ausência de direitos e garantias, reivindicações laborais e contestação social inexistentes, sectores chave da economia nas mãos do Estado [chinês], ginástica laboral e, tal como nas escolas, bicicletas para o povo.
«Os portugueses não comem estudos de 3 milhões de euros sobre a caracterização das deslocações dos funcionários públicos», podia ter dito Pedro Passos Coelho, mas não disse.
Todos os dias, religiosamente às 10:30 a. m. , toca a sirene nas fábricas e nos escritórios e uma voz marcial convoca todos os trabalhadores colaboradores para a ginástica laboral.
Podem tirar Nuno Crato do maoísmo mas o maoísmo nunca há-de sair de nuno Crato.