"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
A verdade é que se não tem havido a crise do subprime, Passos Coelho roído a corda e chumbado o PEC IV, contra a opinião da União Europeia, o pedido de resgate, a chegada da Troika e o resto de má-memória, já o aeroporto de Alcochete estava a funcionar em pleno. E o que mudou desde então foi nada, a não ser a alucinação de meter um aeroporto no Montijo, contra a opinião de todos os especialistas, a curto prazo com os pés de molho por causa da aceleração do aquecimento global e das alterações climáticas, e para gáudio do pato-bravismo da promiscuidade política-betão, ali com um maná de desordenamento territorial a perder de vista. Do que a gente gosta é de conversa da treta, de chover no molhado, de reunião de condomínio até às tantas da manhã para chegar a lado nenhum, de sermos enganados com a "criação de emprego" e os "milhares de empregos, directos e indirectos", nunca posteriormente confirmados.
O advogado do empregador dos mariscadores de Alcochete disse na televisão para quem quis ouvir que eles vivem numa instalação agropecuária, aka antiga pocilga agora convertida em caserna, porque é o seu modus vivendi, estão ali com as suas famílias e os seus pertences, sentem-se bem, não reclamam, nem fazem greve, nem se queixam à inspecção do trabalho, nem nada [esta parte ele não diz mas subentendesse]. Se no Bangladesh, Sri Lanka, Nepal, Paquistão, vivem numa barraca, isto é subir na vida e na qualidade da cuja, o famoso "elevador social".
Que alguém, ainda por cima advogado, diga isto na televisão com a maior das naturalidades e sem ser confrontado pelo pé de microfone, diz muito da impunidade inata com que esta gente age e pensa e da cultura da superioridade civilizacional. Não, não há racismo em Portugal.
Excluindo a acentuada baixa de salários e consequente perda do poder de compra, a precariedade e a perda de direitos e garantias, com a cumplicidade dos homenzinhos responsáveis da UGT, e uma vez que a teoria do "fizemos uma alteração estrutural da economia portuguesa" teima em ser desmentida pela realidade, Pedro Passos Coelho ensaiou, perante o aplauso da assistência, nas jornadas parlamentares PSD/ CDS-PP de Alcochete, um novo mito urbano, o de se a economia portuguesa é por natureza propensa ao consumo [que é como quem diz "o que é que querem que faça? só se os puser a todos a pão e água"] como é que ainda há quem defenda um incentivo ao consumo como estímulo para o crescimento? Aqui está o novo mito urbano, o do diz que disse da reforma estrutural da economia.
E não podíamos processar quem espoliou o património natural e ambiental, comum a todos, para benefício de meia dúzia, por isso mesmo, pela espoliação? Poder podíamos, mas não era a mesma coisa.
Por que cargas de água é que num rectângulo com 92 090 km² se foi escolher precisamente uma Zona de Protecção Especial numa Reserva Natural do estuário de um rio para construir um centro comercial?
Se esta explicação simples tivesse alguma vez sido dada aos cidadãos talvez o resto não tivesse vindo por acrescémio.
(*) É o mote para uma canção infantil que nunca mais acaba. “E nessa quinta tinha um cavalo…” e depois um porco e depois um pato, todo o zoológico doméstico, sempre finalizado pelo inevitável ía-ía-aó.
Assim como a Dona Delmira conhece alguém no hospital que desbloqueia uma consulta externa já para amanhã e com a senha de chamada n.º 1; assim como o senhor Pires tem um professor amigo num Conselho Executivo que lhe encaixa o filho numa escola fora da área de residência, também há quem tenha um sobrinho no Governo, disponível para ouvir um empresário-investidor e agilizar um empreendimento. Numa outra dimensão, é a mesma face da mesma moeda que circula desde sempre neste triste país. E tudo isto é muito triste. Duvido é que tudo isto seja fado, como na outra canção.
(Foto de Jean Dieuzaide)
Adenda: desculpe lá que pergunte, mas o que é a crise tem a ver com isto? Depois levam nas orelhas do Pacheco Pereira e com razão.
Nuno Severiano Teixeira, ministro daDefesa Nacional, hoje no Expresso sobre a possibilidade do novo aeroporto ser construído no campo de tiro de Alcochete:
“Queremos ser parte da solução. Se o interesse nacional aconselhar que a localização do novo aeroporto seja em Alcochete, não é por causa do campo de tiro que deixará de se fazer naquela zona.”
“Queremos”?! A hipótese “não queremos” coloca-se?! Senhor ministro da Defesa Nacional, o ministério por si dirigido é entidade autónoma dentro do Governo? Desde os “saudosos” tempos do Conselho da Revolução que não tinha conhecimento de um ministro com a tutela dos assuntos militares com poder de última palavra. Ou isto agora é “Governo, Governo, galderagem (*) à parte”?
(*) de Galdério – adj. s. m. diz-se de ou individuo vadio, trampoliniero. Diz-se de ou individuo esbanjador.
Ontem pude ver / ouvir Francisco Van Zeller responder a Mário Crespo no telejornal das 21 na SIC Notícias, que uma das vantagens de Alcochete em relação à Ota para a construção do futuro aeroporto era a de não haver “especulação imobiliária possível” uma vez que todos os terrenos são propriedade do Estado. Eu acho que o presidente da CIP está a ver a coisa ao contrário. Isso é um ponto contra Alcochete; melhor, uma enorme desvantagem, a juntar a outra que parece estar a passar despercebida: A Câmara de Alcochete é gerida pela CDU. Então e a já lendária trilogia Autarquias PS / Construtores Civis / Clubes de Futebol? Se bem que estes últimos, em princípio, não são tidos nem achados para o que aqui se joga. De cada vez que o PS ganha uma autarquia, como que por artes mágicas, assistimos a um disparar da construção imobiliária por tudo o que é sítio. Dou só como exemplos, alguns, poucos, para não ser maçudo: Dezasseis anos em Setúbal (venham os americanos bombardear a cidade para se começar construir da estaca zero, tal é o caos urbanístico); dois mandatos em Sesimbra (só não se construiu dentro de água porque os engenheiros disseram que não era viável, mas na praia sim); um mandato (!) em Alcochete (e uma aldeia passou a megapólis num abrir e fechar de olhos). Ou Van Zeller anda alheado, o que não me parece; ou acredita no Pai Natal. Alcochete para o lobby construtor PS é uma péssima opção.
(Porque é que insistem em chamar ao novo aeroporto “de Lisboa”? Pergunta: “Onde é que moras?”, resposta: “Em Lisboa… mas tecnicamente falando é em Alcochete, distrito de Setúbal…”)
Parece que José Sócrates mandou o ministro Mário Lino “aguentar os cavalos” até que o estudo sobre a viabilidade de Alcochete como alternativa à Ota esteja acabado. Não sei até que ponto a voz do Presidente Cavaco Silva se fez ouvir lá para os lados de S. Bento, de modo a inflectir a trajectória do que à partida parecia irreversível.
Da parte daqueles que se sempre se bateram por outra localização que não a Ota, seja ela o Alcochete, Poceirão ou Rio Frio, importa agora não entrar em euforias, nem no discurso fácil de encontrar vencedores e derrotados, por várias ordens de razões.
A saber:
. Não há ninguém a ganhar aqui o que quer que seja; com uma excepção chamada Portugal, embora me parecendo óbvio que, a haver um derrotado, ele dá pelo nome de Marques Mendes. Foi ele que apareceu em directo das Faias, com um batalhão de jornalistas e mais uns quantos técnicos, a defender a construção do novo aeroporto naquela localidade. Ânsia de protagonismo? Ânsia de ter razão? Aguardemos.
. Não é liquido que o Governo esteja de boa fé neste processo, e nada nos garante que a opção Ota seja descartável, mesmo perante alternativas mais viáveis quer do ponto de vista económico, quer do cumprimento dos prazos de construção. Por todo o percurso de teimosia política de José Sócrates, bastas vezes confundido com capacidade de decisão, e pelo discurso assumido até hoje pelo executivo. Importa tomar em linha de conta o que escreve hoje a cara mais visível e incansável da campanha em defesa da Ota – Vital Moreira – no seu blogue Causa Nossa. Segundo ele, esta é uma decisão política e não científica, e Vital Moreira, melhor do que nós, lá sabe do que fala e com que linhas se cose; e em política as coisas nunca são o que parecem. Podemos estar perante uma manobra de diversão de Sócrates, de forma a “matar dois coelhos com uma cajadada”: A opção Ota está tomada e é irreversível dentro do Governo, mas, que não lhe venham apontar o dedo e dizer que não soube ouvir e estudar alternativas. Entretanto ganha algum tempo até Agosto, e liberta o seu candidato a Lisboa – António Costa – de um tema incómodo para a sua campanha. E Costa agradece.
Como era de esperar; mais rápidos que a própria sombra, surgem os talibans do ambiente a protestar contra a opção Alcochete. Se estes senhores tivessem voz no tempo de Duarte Pacheco, a actual ponte 25 de Abril nunca havia sido construída a pretexto algum. Nem que fosse porque iria destruir um carreiro de formigas que passava onde agora é a Praça da Portagem.