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DER TERRORIST

"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.

Férias de Agosto

por josé simões, em 21.08.17

 

Doca das Fontainhas Américo Ribeiro.jpg

 

 

A minha primeira crónica semanal, aos domingos no Jornal de Notícias:

 

Agosto, um tédio do caraças nos intervalos de lançar papagaios de papel na “barreira” que era o nome das escarpas do Bairro Santos Nicolau até anos mais tarde o maior destruidor do urbanismo e da memória da cidade de que há memória, promíscuo com o futebol e o pato-bravismo, campeão do endividamento e esbanjador do património municipal  – o mui socialista Mata Cáceres as ter baptizado de S. Nicolau. Papagaios políticos. Os verdadeiros. De cana e guita, feitos com cartazes pedidos aos coladores que todos os dias, de balde de cola e trincha de caiar nas mãos, invadiam as ruas do bairro. Papagaios do PS, do PPD, do PCP, do MDP/CDE, do MES e da FSP, da FEC m-l, da LUAR – era o meu, do CDS não havia que isto é a cidade vermelha e o pessoal aqui não brinca em serviço. Papagaios políticos [sem segundas intenções].

 

Bora ao banho à doca? E lá ia o pessoal todo, ladeira das Fontainhas abaixo. Ao banho em cuecas, de gola alta de seu nome, que nem Coca-cola havia quanto mais underwear Calvin Klein. Ao banho e a nadar à Mark Spitz de uma ponta à outra da doca, ao comprido e de atravessado, a jogar ao apanha dentro de água e por cima dos botes, das traineiras, das barcas e das bateiras e dos rapas e a fugir do remo nas costas dado por um pescador com toda a força. “à pá sóce, levas um murre puz bêçes caté ficas a fazerre dominó pós dôs lades!” [à pá sócio, levas um murro pelos beiços que até ficas a fazer dominó para os dois lados].

 

Férias de Agosto em Setúbal no tempo em que só os algarvios iam para o Algarve nas férias e antes do tempo de um algarvio ter querido transformar o bom aluno no paradigma da prestação de serviços na Europa e arredores e de ter pago para abater olival, pomar, e os barcos da doca das Fontainhas, onde nunca mais ninguém jogou ao apanha, nem mais ninguém apanhou peixe, os camiões espanhóis chegam todas as manhãs de Málaga, para assarmos sardinhas que servimos aos comboios de carros chegados de Lisboa pela auto-estrada, filas contínuas deles, que peixe já não é comida de pobre e também já não há carroças para puxar. É ir à doca e ver. Até foi alargada há pouco, havia falta de espaço para fundear embarcações de recreio do Portugal de sucesso do “dinheiro da CEE” e há falta de espaço nas tabernas dos edifícios fronteiros, com chão de serradura por causa dos escarros e cuspidelas, onde os marítimos se juntavam a beber traçados e a jogar à sueca com baralhos de carta espanhóis e cigarros Winston de contrabando no canto da boca, três vintes e Kentucky fumavam os putos, agora convertidas em restaurantes de peixe assado e choque frrite [choco frito], com os velhos sobreviventes nos andares de cima a ver o movimento para matar o tempo e a morrer devagarinho em terra que já ninguém morre no mar, pelo menos em Setúbal, do lado das Fontainhas.

 

[Na imagem a "Lavagem das Redes na Doca das Fontainhas", Américo Ribeiro]