"Podem ainda não estar a ver as coisas à superficie, mas por baixo já está tudo a arder" - Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 16 de Julho de 1998.
O senhor Saraiva não acredita no capitalismo, o que, vindo do presidente de uma confederação de patrões, industriais, não deixa de ser surpreendente. Ou o senhor Saraiva acredita no capitalismo mas não sabe o que é o capitalismo - a versão bondosa, o que, vindo do presidente de uma confederação de patrões, industriais, não deixa de ser menos surpreendente. O senhor Saraiva e os associados do sindicato a que preside. Caso contrário saberiam que o capitalismo funciona e prospera quando as pessoas têm dinheiro no bolso para gastar, à farta, e não quando chegam ao dia 15 do mês a contar os dias que faltam para o dia 30.
O senhor Saraiva quer fazer depender o aumento do salário mínimo nacional do aumento da produtividade, na mesma linha de pensamento do falecido senhor Azevedo, sem perceber as razões que levam a que os melhores trabalhadores do mundo em França, Alemanha, Inglaterra, Holanda, Luxemburgo, não sejam lá grande espingarda aqui, em Portugal.
O senhor Saraiva, que veio fazer o elogio fúnebre do senhor Azevedo como o independente que não queria saber do Estado para nada e quase desprezava o poder político, um exemplo a seguir por todos os empresários, passados, presentes e futuros, quer o apoio do Estado para os associados do sindicato a que preside, seja ele pelo corte de feriados, pela diminuição dos dias de férias, pela baixa do preço da hora extra, pelas indemnizações a pagar por despedimento, pela baixa do IRC, pelos estágios pagos, não interessa, o que importa é que o Estado entre, que se dane a independência exemplar do senhor Azevedo.
O senhor Saraiva, que não acredita no capitalismo, ou que se acredita não sabe o que é o capitalismo, nunca foi à América, a pátria do capitalismo, nem sequer alguma vez falou com 'amaricanos' que lhe explicassem a velha máxima capitalista "You pay peanuts you get monkeys".
Quando tocou a eliminar feriados e dias de férias, sem qualquer compensação salarial para os trabalhadores, não veio daí grande mal para as "confederações patronais"; quando tocou em a baixar o preço da hora extra, os dias de férias e as indemnizações por despedimento, em nome da criação de emprego que nunca aconteceu, não veio daí grande mal para as "confederações patronais"; já baixar a mais-valia aos patrões e accionistas é que não pode ser, a menos que se baixem os impostos às "confederações patronais" de modo a pôr os contribuintes, e os trabalhadores que auferem o salário mínimo nacional, a pagar o aumento do salário mínimo nacional que as "confederações patronais não podem aumentar nem pagar.
O Presidente da República recebeu as confederações patronais no âmbito da elaboração do Orçamemto do Estado para 2017. Há aqui qualquer coisa que me escapa...
As pessoas, qualquer que seja a idade que tenham, que façam um exercício de memória e tentem lembrar-se qual a vez em que foi preciso arrancar, a ferros, um aumento salarial, um aumento do salário mínimo, um aumento do subsídio de refeição, um migalha que tenha sido, que não tenham levado como resposta-argumento-justificação um "a conjuntura...", "isto está mau...", "a crise..." e, mais recentemente, em período do economês sem mestre dos tempos modernos, com a "produtividade indexada" e as "contrapartidas do Estado", a chico-espertice de pôr o próprio trabalhador que vai receber a esmola a subsidiar o patrão que a vai dar, a contragosto.
Pensem numa data, só uma, qualquer que tenha sido.
É o escudo, inatacável pelo senso comum, atrás do qual se escondem os patrões e os accionistas sem escrúpulos, que o exército de desempregados, mão-de-obra barata e força de pressão sobre quem trabalho e tem emprego razoavelmente remunerado, se dispõe a aceitar como dogma e que serve para manter largas franjas da[s] população[ções] no limiar da pobreza e da sujeição, porque a barriga vazia, a sua e a dos seus, vale o que vale e vale muito. Perguntem aos vossos pais e aos vossos avós e perguntem também o que já ouviam dizer aos pais deles e aos avós dos pais e assim sucessivamente, desde sempre, desde tempos imemoriais e em todas as ocasiões, perguntem.
Por decreto só a mais-valia do patrão via "reforma do IRC". Por decreto só a mais-valia do patrão via redução do valor da hora extra. Por decreto só a mais-valia do patrão via redução dos dias de descanso dos trabalhadores. Por decreto só a mais-valia do patrão via aumento do horário de trabalho. Por decreto só a mais-valia do patrão via embaratecimento dos despedimentos. Por decreto só a mais-valia do patrão via estágios financiados pelo dinheiro do contribuinte.
Por decretro só a mais-valia do patrão com as novas contratações com salário pago pela metade para trabalho igual. Por decreto só a mais-valia do patrão.
Pedro Passos Coelho, líder do PSD, o maior partido com assento parlamentar, o maior partido da coligação que suporta o Governo, liderado pelo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, candidato, em coligação com o CDS-PP, a novo mandato de 4 anos, tem um "problema" com os salários. Sublinhe-se, caso não tenham percebido nestes 4 anos que passaram, os salários dos portugueses são um "problema" para Pedro Passos Coelho. Depois não digam que não foram avisados.
Um dos segredos para a recuperação económica passava por baixar o preço da hora extraordinária, não porque Governo tivesse um modelo de baixos salários para o país, mas porque estavamos de rastos por causa do "despesismo e da irresponsabilidade socialista" e uma parte, importante, do esforço comum calhava ao suspeito do costume e passava por aumentar a competitividade das empresas a troco de uns dias de salário por ano [o pagode ganha bem e sai cedo, o que é isso?], não para que os patrões e accionistas aumentassem as mais-valias mas porque o dinheiro que cada um, imbuído de espírito patriótico, deixava de receber, depois de entrar na tesouraria das empresas tornava a sair e iria reverter para a economia real e para a criação de emprego e para o crescimento económico a perder de vista.
Um sindicato que represente menos de 30% dos trabalhadores do sector pode assinar um contrato colectivo de trabalho que vai valer para todos os trabalhadores de todas as empresas, médias, pequenas ou grandes, desse mesmo sector.
Uma central sindical que represente 30%, ou se calhar ainda menos, dos trabalhadores e que é onde os sindicatos que assinaram o contrato colectivo de trabalho e que representam menos de 30% dos trabalhadores estão agregados, pode assinar, em sede de Concertação Social, um Código do Trabalho que vai servir de "Bíblia" a todos os trabalhadores, seus filiados ou não, sindicalizados ou não, filiados noutra central sindical ou não.
O personagem que recebeu 384 mil euros em 2012 para administrar um banco intervencionado pelo Estado, defende que as empresas possam reduzir temporariamente os salários aos seus empregados e também uma "forte redução" das contribuições das empresas para uma Segurança Social. A mesmíssima Segurança Social, cada vez mais descapitalizada, para onde quer enviar, ao arrepio da Lei, os 600 trabalhadores [mais "adicionais"] que tenciona despedir do banco que administra.
E da próxima vez a UGT e o Torres Couto ou o João Proença que estiverem mais à mão assinam, a troco de outra coisa qualquer que não o combate à corrupção ou o feriado do 5 de Outubro, que isso já foi ultrapassado e atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir.
Esperto - e fazendo jus ao adjectivo (ou será substantivo?) “patrão” - passa a bola para a Segurança Social livrando-se dos “velhos”, limpa as empresas e fica com pessoal novo e a contrato, disposto a tudo para garantir um emprego, e sem os contratos antigos mais respectivos direitos e garantias. Mais um apoio por parte do Estado àqueles que, vai adiantando, não ser seguro retirar.
O excelentíssimo Van Zeller já foi condecorado no 10 de Junho? Se não, estão há espera do quê? Se sim, dêem-lhe outra medalha. Já!
(Imagem do filme Dr. Strangelove or How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964)
Adenda: Só para lembrar aos mais distraidos, patrão dos patrões incluído, que o Estado somos nós mais o dinheiro dos nossos impostos.
Quem está sempre pronto para receber “apoios estatais”, vulgo subsídios pagos com o dinheiro dos impostos dos contribuintes, e não pode pagar mais 25 – vinte e cinco – 25 euros de salário aos seus empregados por correr o risco da empresa fechar, então é melhor que feche de uma vez por todas e que o dito cujo empresário patrão vá trabalhar por conta de outrem que é para ver como elas lhe doiem.
Os cidadãos chamados a decidir, votaram e elegeram um Parlamento, dando sem margem para qualquer tipo de dúvidas, uma maioria inequívoca aos partidos de Esquerda. Eis pois uma interpretação maravilhosa dos resultados eleitorais e de como deverá ser a acção governativa do próximo executivo - governar à Direita:
O que seria do povo português sem a elite iluminada da classe empresarial! Suspenda-se a Democracia; acabe-se com as eleições, e passemos a pedir a opinião ao senhor Francisco Van Zeller e à corporação a que preside, sobre a melhor forma de governar Portugal.
Francisco Van Zeller devia parar para pensar sobre qual ou quais as razões que levam a que povo conceda votações tão expressivas a partidos à esquerda do PS. Mas isso talvez seja pedir demasiado a mente tão iluminada.
(Na imagem South Carolina, 1956, Margaret Bourke-White's photoessay via Life Magazine photo archive)